[A Poética das Águas: A Noite e as Aguas]
[No dorso escuro das profundas águas, um barco vai a esmo: eu]
Era noite. Meu cão dormia sob a mesa. Eu mesmo dormia sob as telhas comuns, rorejava no meu corpo uma friagem antiga. As louças brancas dormiam na cozinha; abandonada de olhares, a água da bica gemia na noite; um vaso de avencas contemplava a copa soturna; no quintal, goiabeiras guardavam a noite em suas folhas, na festa da manhã seguinte, os humanos nem contariam. Tardios na noite, cavalos trotavam lentamente nas ruas vazias da cidade morta.
Era tarde, bem tarde, o mundo uivava, agressivo. Naquele tempo, como hoje, eu já sabia que era tarde, bem tarde; em todo o tempo, sempre é, sempre foi tarde para todo fracasso de ser tomar tento do que podia ter sido.
[Houve um tempo assim, de tardias ações inúteis, soprava o vento na avenida erma, era um vento frio, seco. A secura dos cerrados do Planalto Central rachava os meus lábios. Sensação sabida, mas talvez inconsciente.]
Era tarde. Havia um choro sentido, doído. Vieram chamar minha mãe, sensitiva, mineira de velha estirpe, ela atendeu, ela era alguém que podia serenar os ventos. Busca insana, olhos brilhantes em noite escura. Agora, soturnos, soldados da polícia mineira preparavam-se para o pior: enfiavam lascas de fumo de rolo nos narizes, bebiam longos tragos de pinga amarela. Preparavam-se para quê, perguntavam os meus olhos. Eu não sabia; nada podia, eu era fraco, eu era menino, eu só crescia só, naquele mundo. Antes da fissão nuclear transtornar a minha vida, antes de eu me tornar um cientista, o mundo era aquele, cantante nos ventos, e eu era curado a chá de mentrasto...
Os soldados partiram... o morto, já semiapodrecido, surgiria das águas violentas do Rio das Velhas, boiação macabra, no lugar onde parou e girou a bacia da simpatia com as velas acesas. Soldados ansiosos, cavalos mal contidos, partiam em comitiva, para o festim da morte.
Eu menino, descompreendo o que aprendo. Envolto em macias cobertas de tear, adormeço sob a frialdade das telhas comuns.
Houve um tempo, e foi naquele tempo, e era assim, ou quase assim, não importa. Mas os meus olhos cansados me dizem que, hoje em dia, não há grande diferença: há apenas menos cerimônia quando se cortam gargantas.
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[Penas do Desterro, 15 de dezembro de 2007]