LIONEL "LA PULGA" MESSI, A SAGA: De autista a deus
Diz, mais ou menos com estas palavras, mas em francês, um celebrado autor sobre a definição do autismo:
Diferente do delírio esquizofrênico, em que a personalidade encontra-se cindida sem volta, o autismo é uma condição típica da segunda metade do século XX e do século XXI, que poderia também ser chamada de isofrênica: a loucura do igual a si mesmo. Se a esquizofrenia mais parece um tribunal da consciência em que várias versões de si mesmo se acusam, condenam, vitimizam e absolvem reciprocamente, o autismo seria o simples conto literário de alguém que perdeu sua identidade, sua sombra, o contato com o Outro, a transcendência, a referência ou orientação no espaço e no tempo. O autista é aquele que devorou seu Doppelgänger ou absorveu seu gêmeo mau. O monstro de Frankenstein de Mary Shelley foi o primeiro autista: o problema dele é que, único no mundo, ele gostaria muito de ter um Outro, de ser um esquizofrênico, de se dividir em dois, passa toda sua lamentável existência à procura dessa pessoa, que lhe fornecerá sua própria identidade em troca.
Tudo isso para lembrar de uma quase polêmica de tablóide que muito circulava pelo mundo do futebol na década 2000, e como ela está definitivamente enterrada: Lional “La Pulga” Messi foi tachado por muitos “entendidos” de “autista” nos seus anos iniciais de carreira porque ‘se comunicava’ e ‘atuava’ de forma supostamente bizarra e muito diferente da habitual, tanto nos gramados quanto na vida privada. Diferente até de outros gênios do passado, principalmente do ícone-mor argentino, o extremamente sociável e integrado com o seu povo, o extrovertido e burlesco Diego Maradona, que por muitos anos acabou sendo uma sombra na trajetória de Messi.
Vemos, num dégradé perfeito, como Lionel Messi foi se tornando, com a idade, cada vez mais e mais maradônico, seja porque assim quisemos passar a enxergar após começarmos a prestar mais atenção ou porque o meia-atacante foi, sem afetação, de modo orgânico e natural, se tornando grande e irreverente tal qual seu ídolo de infância, não só através de suas quebras rotineiras de recordes e a técnica cada vez mais precisa e apurada, como também pela maturidade com que aprendeu a chamar toda a responsabilidade e estrelato para si, aglutinando os companheiros pelo bem maior da equipe e confrontando com personalidade e malemolência os críticos e adversários, cada vez mais estupefatos e rendidos diante de sua incontestável evolução.
Messi soube se desdobrar, enquanto se movimentava como uma flecha durante os jogos, separou o Messi indivíduo do Messi lenda, o cidadão do mago protagonista de espetáculos, se situou num ângulo favorável, numa distância confortável, diante do espelho em que se punha a observar seu próprio Outro, que na verdade são duas coisas distintas, seus dois Outros – 1) o seu futuro como será contado pela História, que só pode ser decidido por ele mesmo; 2) e aquela antiga assombração ou reflexo pertencente ao passado, que mais parecia um destino inexorável a pesar como uma bigorna sobre suas costas, ele, Diego Armando Maradona. Por muito tempo, no entanto, pensaram, e talvez Messi tenha pensado, que seus dois Outros eram um só: Messi era Maradona; mas se Messi não tem uma Copa, então Messi não era Maradona; Messi não era ninguém. Messi será Maradona, enaltecido pela história do esporte, mas só se...
Os anos profissionais de um jogador de futebol passam muito mais depressa que nossa já efêmera vida. E, para Messi, sua trajetória como jogador, o capítulo mais importante de sua biografia, culminou com a decretação oficial de sua “santidade atlética”, a atribuição sem direito a controvérsia de seu status de craque atemporal, diante de toda a imprensa e da atual geração de torcedores do esporte mais popular do planeta, após a apoteótica exibição na final da Copa do Mundo de 2022, no momento em que erguia a Taça Fifa. Hoje, mesmo antes da aposentadoria, Messi já é apontado (e não apoSEntado, leia bem!) – e por não poucos, talvez pelos mesmos que antes tentavam explicar suas performances sobrenaturais apelando para diagnósticos clínicos! – como “melhor que Maradona” enquanto jogador e “tão influente e carismático quanto Dieguito” fora das quatro linhas, façanha notável, outrora até impensável, quando nos damos conta de que na Argentina Diego Maradona é venerado como um deus...