Irmandade
Vou com meu poema lado a lado pela vida, vai comigo e eu vou com ele
Dois velhos estradeiros, dois inseparáveis companheiros
Relembrando noites incontáveis de tristezas e euforias
Entre um uísque e mais outro, uma vodka e uma cerveja
Na imensidão do pensamento, na fantasia etílica dos bares
Eretos, sóbrios, líricos e bêbados pela madrugada afora
Loucos de uma plenitude que ausenteia o alvorescer
E desacontece o sol e a vontade de dormir
Pois a vida pede mais uma cancão, mais outra poesia
Pra figurar no boletim e enfeitar o sono da donzela
E o desdém dos meninos que levam horas no banheiro
Vou com meu poema vivendo o tempo que nos resta
E assim simplesmente como a calcada e o muro, o cão e seu dono
Como a flor e o beija-flor, o sol e o girassol
Como o cavalo e o relógio em Salvador Dali
Títeres cambaleantes, quando um cai, o outro ajuda a levantar
Parceiros e cúmplices em nosso desarrazoado caminhar
Devotos e contritos como o padre e seu altar
A terra e o invólucro da semente, o sal e a água do mar
Hora Sodoma e Gomorra, noutro instante mosteiros do Tibet
Irmãos de fé, de versos lívidos, irmãos de sangue
Somos essa vontade louca de ficar, esse desejo incontido de partir
Somos esse dia que encerra e a tarde que tarda anoitecer
Somos mais que o tempo, mais que o vento, mais que o amanhã
A sílaba e o fonema, a mão e o verso por nascer
Com a grande missão de não Ter missão nenhuma
Pois se o vento oferta a folha a direcão
O mérito do vento é o de não Ter vãos pensamentos
E muito menos um norte a se seguir
Quando se acha no direito vai e quando quer para
E quando para de soprar ninguém pode fazê-lo comecar
Tudo passa a Ter sentido quando o sentido foi esquecido
Encontrar é uma faculdade de nunca procurar
Há profundidade no nada e nada no profundo
O mar contém o lago, mas o lago também contém o mar
E pro verso que queremos ver nascer
Tem mais serventia pedras e borboletas que arma estelar
Eu e o poema carecemos de relevâncias e complexidades
Dos termos rebuscados, de palavras incompreensíveis
Dos jargões exaustivamente utilizados em escritos
Para o caminho basta o pé e a vontade de caminhar
Para o desabrochar da rosa, água, sol, terra e ar
Para o azul do céu, o vôo pássaro e nuvens que se soltam
A realidade que afronta cada manhã que inequívoca principia
É construída de inteiros de simplicidade
Em meus pensamentos moram as ondas que se arrebentam
Duramente nos penhascos e os riachos cristalinos
Os versos que me habitam é fruto agridoce desta tênue tessitura
Da brisa que orquestra a tarde e a tempestade que se avizinha
Meu riso de menino é espelho dágua de abismos colossais
E o poema vai nele refletido para todo o sempre e o até nunca mais