Amanheci mais um dia. O horizonte fugidio, poucas nuvens se apresentavam ao nascente. E minhas ideias pingavam feito lágrimas. Lenta e profundamente. Já não sabia dizer se aquilo era dor ou arrependimento. Ou pior, os dois juntos e misturados batendo no peito. Sabia que tinha que providenciar o enterro. E, só percebi que a morte inundada de silêncio era também um ritual que me fez recordar Bolero de Ravel. Com repetidas notas como um caminhar em direção de um deserto cada vez mais profundo. Será que as lembranças também morrem? Será que a memória também falece? Separei a roupa que seria vestida. O último vestido. A última vaidade em cobrir o corpo que será sepultado. Tudo tão ilógico. Os paradoxos dançando entre as flores da coroa que exaltava o morto. E, lá fora o vento outonal sussurrando mensagens secretas.  Meus olhos secos e ávidos caminhavam para o sepulcro. A corda baixou o caixão. E, por fim, o momento da despedida. A última palavra. O último sentimento. Depois da última pá a cobrir os restos mortais, a eternidade abriu-se como um véu muçulmano perfumado de mirra e alfazema. Entardecer. Enrubescer a alma com os derradeiros raios do sol, é como se despedir do morto. Inesquecível, dolorido e definitivo.
 

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 20/04/2023
Código do texto: T7768802
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