Canibal

I

Tenho vívido de mim mesma

E isso não é uma novidade se visto de forma biológica ou social

Mas eu quero dizer que tenho sobrevivido de mim mesma

Tenho me comido de dentro pra fora

Minha cabeça em desarranjo, com dentes pontiagudos, estraçalha tudo

Meus órgãos em coro vão consumindo tudo de mim

Nada que entra é novo

E tudo que sai é mastigado pela minha alma faminta

Eu acordei e cuspi na pia

E havia um pedaço de rim, de fígado, de infância ou do pesadelo da noite passada

Eu abri a torneira e senti meu corpo se alimentar

Eu ainda não havia tomado café

Então do quê?

De mim mesma

Vou me consumir por completo

Me desfazer inteira

E depois me refazer

Porque nada no mundo de fato desaparece, mas se transforma

E eu vou renascer

Numa flor, numa árvore, num cavalo livre por entre os campos

Vou ser tudo aquilo que eu quero ser

Mas antes

Preciso sentir essa dor que é viver de mim mesma

II

Morrerei e irei para o céu

Ou para o inferno

Retornarei para a árvore da vida

Ou tão somente serei um espírito

Vagando por outros planos astrais

Em todas as possibilidades serei somente o que sou agora

Materia orgânica

Alimentarei o solo com o meu corpo que dará vida a outras formas de vida

E isso não mudará nada a ordem natural das coisas

E eu não deixarei de existir

Existirei em outras formas

Prosperando o ciclo de funcionamento do universo

Dando a minha alma a paz que ela tanto precisa

De ser alguma outra coisa além do que é agora

Além do que essa existência nos permite

Que é limitado a sofrer e pensar sobre esse sofrimento

Mas sem nunca de fato poder alterá-lo

Porque não conseguimos saber nem para onde vamos quando não temos mais para onde ir