Cão sem dono
Por entre as sombras escuras da noite, eu vago pela cidade como um cão sem dono. Aqui e acolá vou indo sem destino pelas ruas. Afronto os becos e os parques escuros. Sou cão sem dono, sou bicho sem rumo. Eu me escondo do brilho da lua. Meu vulto percorre a cidade como um fantasma vivo. Fujo das luzes de neón e dos faróis dos carros, como se fosse um vampiro. É nas sombras, nos cantos escuros dos viadutos, sob as pontes mal iluminadas que encontro o que preciso. Observo fascinado os bêbados, as prostitutas e os mendigos. É deste arremedo de homens que me aproximo. Vou a busca dos sentimentos perdidos. Vasculho as latas de lixo de seus coracões, a cata de pedacos de sentimentos, que doídamente foram, fora atirados. Farejo, no lixo varrido, miúdas coisas, tais como, pedacos amarrotados de antigos de poemas, cartas velhas de amores fracassados, fotografias que foram detalhadamente recortadas com com a navalha do ódio e desespero, a luxúria doida do pecado consumado, a traicão imperdoável que foi pelo desejo
incestuoso perpetrado.São estes os tesouros que busco, são estas as vozes que busco ouvir. O desprazer do fingimento nos arroubos e orgasmos simulados de um amor vendido, a voz rouca e fraca e a história de farrapo humano de um bêbado notívago, o corpo fedorento e desgastado pela fome e pelo frio do homem maltrapilho. É este o cheiro humano que me apetece. É desta comida insidiosa que me alimento. E mastigo lentamente cada pedaco de sentimento buscando saber o gosto e a origem desse bocado nobre que digiro. Nesse voraz canibalismo, de humanos sentimentos perdidos, eu tento incessantemente salvar o meu destino!