Noite

Era mais que claro

A noite não prometia descanso. Igual a anterior - carregada de sintomas de uma descontrolada multidão em busca de algo que nem ela sabia o que era - a noite presente, também ela, e por outras razões, trazia sintomas, igualmente, preocupantes, igualmente desconcertantes quando, sem que alguém fosse capaz de dizer como aquilo acontecera, aquela noite, fria e anunciadora de misteriosas conjecturas, não podia negar, ninguém, em sã consciência, em perfeito juízo, mesmo que tomada de algo inesperado, alguém, em sua razão plena, sem modéstia e sem recalque, fosse capaz de negar os fatos. Os fatos, mais que convicções, os fatos são a concretude do que se afirma. Julgar se legítimos ou não, são possibilidades, mas, não se pode negar, fatos são fatos; sintoma elementar de qualquer investigação, mesmo que mínima.

Nas esquinas, escuras e desertas, somente travestis e prostitutas. Gente em busca de gente. Serviços oferecidos e procurados. Corpos procurando corpos para que a sede do sexo proibido possa, somente ali, e em segredo, ser saciada. É verdade, ninguém nega, que saciada a busca, a vida retorna, cheia de desejos e sentidos ocultos que não podem ser demonstrados porque a etiqueta da boa vivência assim ensina. É preciso, sob o manto da noite, como se Edgar, ou um Corvo, pudessem, por suas presenças, eles, somente com suas presenças, fossem capazes de anunciar o próximo passo, a próxima taça de vinho à boca e no segundo seguinte, como se, e sem trombetas a anunciarem a chegada do anfitrião, como se Roma, a grande e promíscua cidade, sedenta de sexo e onde Galígula, o imperador sanguinário, ele, em pessoa e poderoso, anunciasse o próximo passo, o último de muitas vidas. Tudo possível, tudo possibilidades. Mas...chega o táxi. Carro luxuoso, ao motorista, sem que as primeiras gotas de chuva atinjam a cliente, ao motorista, treinado na mais prestigiada empresa prestadora desse serviço de transporte, cabe descer e abrir a porta. Não é permitido ao chofer nada mais que sua destreza em dirigir. A cliente entra. Palavra, nenhuma. Soberbamente sentada no banco de couro, palavra, nenhuma, apenas o desprezo nos olhos de quem luta com seus mais íntimos segredos, silêncio. Trajeto sem nenhuma palavra. Luzes de néon, corpos maltratados e famintos batem no vidro do luxuoso carro parado no semáforo. Corpos ignorados porque, quase todos, corpos pretos. Pretos não são gente, disse alguém na tribuna e nada se fez. Semáforo abre. Carro luxuoso parte, parado com as mãos estendidas, o pedinte. Na esquina seguinte, uma abordagem. Normal, responde mecanicamente o chofer à cliente no espaçoso banco logo atrás. Janelas fechadas. Outro pedinte. Janelas fechadas. Semáforo abre. Carro avança. Normal, numa cidade sem vida.