Obra prima (ou, tributo a Beethoven e Van Gog)
Foi, foi num tempo passado. Um tempo sem volta. Um tempo que ficou na memória e cisma virar saudade. Coisa que dói mais que flecha perdida de cupido. Ora, ora, à sombra de árvore grande, árvore frondosa e mais bela que princesa, repousa largadamente um pássaro da mais viva cor. É tão bonito, tão elegante, de cores tão vivas, que a luz do sol que trespassa pelas folhas, ao encontrar as penas do ilustre visitante, mais que um reluzir de efeito de luz, o que se vê, é a pura manifestação do quão bela é a vida solta. As cores sobrestam e se conjugam com o verde musgo da mata. Lá longe, ouve -se o canto do Uirapuru, o cantor da floresta. Ao pé da grande árvore, pequeninas criaturas, num frenético vai e vem, lembra muito as avenidas e carros das grandes cidades. O macaco prego, seguido de outros mais dois, salta pelas copas das árvores como se brincasse num
parque de diversões igual crianças marotas.
Dois passos atrás, como um colosso histórico de algum deus grego, bem ao lado da grande árvore, como se irmanados, ambos, árvore e monumento, quase abraçados, dava ao local algo de divino, parecia que a união desse ao terreno possibilidades de existências e formas variadas. Cantos e rangeres de folhas e galhos e vento, tudo harmonicamente misturado, proporcionava uma sinfonia tão linda e melodiosa que Bethoven, se vivo fosse, teria dúvidas da sua Nona Sinfonia.
Tudo era bom. Longe dali, coisa de meia légua, como se diz pra qualquer distância, meia légua é igual ao "logo ali" para sujeitos da cidade. Fato foi, ou fato é, porque no alvoroço do acontecido, cantos e cores e mata e bichos, tudo se realiza. É na copa das árvores que o bicho preguiça se espreguiça e se exibe na sua lentidão de existir. Nada avança antes do tempo. Nada acontece sem acontecer. Razão desarrazoada, assim, sem precisão de sentidos certos, pois, que de certo, sem meias sabenças, é saber apreciar o acontecido acontecendo. Ver na mais pequenina criatura a grandeza da existência. Ver nas penas coloridas do pássaro displicente à sombra da grande árvore, o reluzir de cores amalgamadas ao Verde da mata e anfitriã da luz do Sol que, timidamente gruda às penas da ave - como o casulo que se abre para que a borboleta voe - e desfila num colorido digno de Van Gog. Obra prima. Ali, aos olhos e alcance, sem intermediário, sem curadoria de uma obra em exposição permanente acontece acontecendo no acontecido. A Araponga, faceira, como ao artista que se apresenta tão logo abrem-se as cortinas, ela, esplendorosa, qual um barítono em plena cena solo, esbanjou, por toda mata, seu canto único e belo. Todos os viventes, mata, bicho, todos, como platéia privilegiada, silenciosamente escutaram. O Uirapuru, o cantor da floresta, até propôs união. E ela, a Araponga faceira, como uma rainha fina e educada nas mais requintadas cortes, recusou, não sem antes, abrir caminho para que o Uirapuru desse seu show. É só chegar chegando, como fez o Azulão da Amazônia, exibido e exuberante no seu cantar. Sem esquecer a amada do Galo da Serra, que se anuncia e anuncia para o macho, que olha de longe, que está pronta para o coito necessário à continuidade da espécie. Nada em desacordo, nada fora do lugar.
No riacho que se estende e abre pequenas veias, como a aranha que tece suas teias e chega por outras possibilidades de caminhos , as águas que brotam, avançam à mais escondida raiz. Nada fica fora, nada está esquecido, não. Como numa sinfonia, nada acontece sem que outra coisa também aconteça. A Natura, por si, e sem outras possibilidades, que não, a de se deixar acontecer. Tudo acontece acontecendo, flui como o rio em direção ao mar.