Solilóquio
Tudo anda tão diferente agora que não há espaço para a alma velha neste corpo jovem e tão castigado.
Não nasci em boa época. Os tempos de minha infância foram os mais danosos de uma vida inteira não vivida. Éramos envolvidos pelo inebriante veneno das mídias, os quais intoxicavam nossos imaginários com as imagens do amor-perfeito, da harmonia entre os díspares, da união progressista e tantos outros cosméticos a compor a maquilagem grossa do mundo. A verdade, por mais gorgônica que fosse, deveria ser vista a olho nu, mesmo que esta petrificasse nossa natureza. Ao menos o tempo, a filosofia e as arte a tornariam pó e desse solo renasceria a vida.
Porém, nascer nos séculos passados de certo me condenariam prematuramente às fogueiras do exemplo e da correção moral. Nesse sentido é que queria eu ter sido concebido nos planos mentais de meus autores favoritos, de crescer no útero de papel e tinta deles e por fim, após doze longos meses de dores temporais, ser parido e nascer um romance trágico. Ser acalentado por milhares de mãos , amamentado pelo salgado leite lacrimal dos seus leitores e por fim ganhar centenas de anos mentais em suas bibliotecas interiores.
Então, eu me tornaria uma egrégora tão poderosa quanto o diabo, capaz de ser evocado por um sentimento, uma música, um cheiro ou até mesmo uma cor. O simples respirar daqueles que leram de meu corpo, me tornaria presente e vivente como o Cristo.
Mas, não nasci livro, nasci projeto inacabado de autor ouroboros que se devora, se cria e se recria, que não compreende a sua época por detestá-la e se questiona com filosofias de liquidificador.
"Quando uma imagem passou a valer mais que o objeto a que representa? Justamente quando a imagem ganhou o poder se interferir na lei natural do tempo, pois a representação fica enquanto o representado se esvai."
"O que encheria sua boca de água? Uma pintura realista de frutos, ou uma cornucópia em si repleta de deliciosas frutas?"
Por fim, o tempo em si me foi como uma infecção a se alastrar por todos os lados, a correr em minhas veias, a acelerar o intransponível abismo de meu eu com os outros e a criar-me tantas camadas, as quais repousarão em outro solilóquio.