É isto uma mulher
O que de fato sou eu? Em tonturas vibrantes, minha mente se perde e se abstém do que existe, por alguns segundos eu morro e só vejo o mundo, apenas vejo. Fito fotografias que um dia me roubaram, roubaram um momento meu, um olhar, a pureza e os guardaram para sempre no papel. À toa, a mente tenta resgatar algo que nem sabe da existência, não consigo acreditar se algum dia eu fui real, me montei no que os outros fizeram de mim, continuo usando almas como bengala de existência, a validação de ser, do ser. Autoquestionamentos me agulham, não há como escapar do auto ódio, tremelico os pelos, entristeço, não há mais o que explorar do que se constrói apenas de terceiros. Pode chegar por perto e verá que não há mais nada a enxergar, uma fraude sou eu. Poderia acabar aqui essa constatação, mas o cálice chega tão perto, os cortes se aproximam e a terapeuta pediu para recorrer às artes. Desenhos fúnebres e desengonçados; textos repetitivos; palavras à toa; dança dura, pensando em outras pessoas observando. Leitura me ajuda, mas não distrai de quem eu sou: as palavras me denunciam. Denunciam a grande peste, a carnificina, a fealdade que existe em mim. E tudo isso é vazio, não há explicação, não há. Seria de grande ajuda se eu pudesse voltar e não deixar acontecer o que me quebrou, ninguém me consertou e eu não consigo entender o defeito. Onde eu posso consertar quem sou? Onde colocar os band-aids, o tônico, o curativo, o carinho? Apalpo-me na tentativa de encontrar a fonte podre que mal cheira por dentro e nada encontro. A dificuldade de amar-me, de olhar com carinho quem sou, ultrapassa todas as outras. Piso em mim, escarneço de mim, pobre eu que nada sou, que penso ser Universo, que penso que algo mágico e lilás me aguarda. No fim da caverna, há apenas bichos famintos e eu apenas uma presa, fazendo parte da natureza, virando carniça e cocô, adubo; mais uma para a grande máquina, a desescolhida. Sim, é drama demais e eu já não me importo. Queria ser uma mulher e isso vai além do que a biologia pode explicar. Tento parar o tempo, enquanto observo a poeira voar dentro do quarto, vejo beleza na poeira e não vejo em mim. Escuto o barulho das teclas que são machucadas pelos meus dedos curtos e elas emitem um som delicioso, não suporto me escutar, optarei pela mudez. Acho o papel mágico, a finura, a forma como se contrai com a ponta do lápis, a ponta da caneta e deixa, se abre para receber qualquer risco ou rascunho, à meia luz isso é poesia. Minha pele sangra quando tento escrevê-la, no crepúsculo isso é apenas desconsolo. Às vezes sussurro algumas palavras de salvação e socorro, não coisas bonitas como Nadedja, apenas algumas palavras soltas e desconexas. Nada vivi para tal escárnio, é por isso mesmo que não entendo. Se for a bateria, que eu troque. Se for problemas de conexão dos fios, que reconectem. Se for problema na tela, que a troquem. Quero ser uma mulher! O que vejo, meio de lado, escapando pelo espelho é um rosto de uma qualquer, não sou eu, o eu não existe. É um corpo que paira em frente ao espelho e meus pensamentos. Não sei como tiraram tanto de quem não tinha, muita maldade, grande desgraça. Viram minha necessidade e levaram mesmo assim. Não foi somente um, foram todos. Continuo deixando tomar, tomar todo pingo que cai de qualquer chuva dos meus olhos de oceano. De oceano, mar. De mar, rio. De rio, lago. De lago, lagoa. De lagoa, poça. De poça, chão com estria. O sol apenas me secou. O Sol apenas me secou e a culpa é minha por ser poça e não mulher.