Esplendor

Talvez a vida seja mesmo assim: um apanhado de recortes que vão se costurando, como uma grande colcha, onde tudo vai se sucedendo sem aparente ordenação; essa sequência às vezes se parece com o salto de uma bailarina, com o voo de um pássaro no firmamento, ou, enfim, com alguma imagem de suave movimento que evoca um estado de flutuação, de graça e de leveza. Em outros momentos, a sequência parece atropelar-se bruscamente sobre si mesma; a linha se quebra, os retalhos estão manchados e sujos, e não há esperança ou mais nada no horizonte senão um vazio que parece estender-se infinitamente. Contudo, nem a beleza nem o horror são eternos: operam, por natureza, em alternância.

Talvez a vida seja mesmo assim, feita de uma matéria porosa, por onde as fibras do tempo vão penetrando sem qualquer cerimônia. E, na medida em que as lembranças se avolumam, tornam-se mais evidentes as intempéries nos antigos retratos em que já não nos reconhecemos. A infância, que ingenuamente parece não ter sido antes de ontem, subitamente arranca de nós uma lágrima solene; e as marcas impertinentes de certas noites impregnadas em nossa pele não findam jamais, reencenadas em nosso jardim mais íntimo.

Talvez a vida seja mesmo apenas um emaranhado de palavras nas quais escorregamos e engasgamos, titubeando em nossos próprios desejos, quase temerosos que os deuses nos ouçam e os atendam; e é sobretudo diante do esplendor desconcertante que se descortina sobre nossos olhos, na forma de um imperioso mar, que somos relembrados da assombrosa raridade que é viver.

pedro toscan
Enviado por pedro toscan em 06/02/2023
Reeditado em 07/09/2023
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