Solidão
O anoitecer sempre foi meu momento preferido do dia. Não sei bem o motivo, mas durante o dia e a tarde sempre estou extremamente cansada, sem energia e vontade de fazer nada, mas quando chega o anoitecer tudo muda, parece que o escuro é o meu carregador particular, ele sempre me reconforta.
Hoje, porém, as coisas estão diferentes. O anoitecer não recarregou nada, não me trouxe conforto e nem a costumeira paz. Na verdade, ando pelas ruas escuras e vazias e me sinto perdida, com medo, sozinha. Do outro lado da rua, avisto alguém... A Solidão. Ela me olha e sorri tristemente, como se soubesse de algo que eu ainda não sei e sentisse uma pena profunda de mim. Isso me incomoda.
No escuro da noite, no meio de uma grande avenida sem carros, sem pessoas, sem barulho, sem luzes, olho ao redor e só há nós duas em toda a imensidão e escuridão da rua em que me encontro. Fixo o olhar na Solidão sem entender nada, não consigo retribuir o triste sorriso dela, me sinto confusa demais para ser gentil.
Por um momento hesito, mas tomada por um impulso, decido me aproximar daquela que ao mesmo tempo me é tão estranha e familiar. Conforme me aproximo, vejo as suas expressões. Ao mesmo tempo tão bela e horripilante, com traços suaves e tristes, aparência cansada, de quem sofreu a vida inteira e não teve um dia de descanso e consolo se quer... Me senti compadecida, sabia como era essa sensação, mas diferente dela eu sou boa em mascarar o meu enfado a maior parte do tempo. Sou capaz de dar os sorrisos mais brilhantes, daqueles que fazem os olhos sorrirem juntos, sem que ninguém perceba que é falso e o quanto estou morta e vazia por dentro.
Os olhos da Solidão eram lindos, me convidavam a mergulhar dentro deles. Possuíam uma imensidão de vida, dor, caos e tormenta... Um convite perigoso, de fato, mas muito convidativo, não nego. Os lábios dela pareciam terem todas as respostas do mundo, daqueles que só quem passou por muitas coisas sozinha consegue ter. Ela tinha uma aparência atemporal, não parecia jovem e nem velha, era realmente uma incógnita estipular a sua idade, mas a cara de cansada, os ombros caídos e suas tristes expressões denunciavam que ela era bem vivida...
Quanto mais eu a olhava, mas eu me via nela... Mais a minha aparência se projetava na dela. O anoitecer fazia a aparência da Solidão ser ainda mais intensa, daquelas que são impossíveis de não notar. Ela continuava a me fitar, como se quisesse me dizer alguma coisa, mas dessa vez ela não mais sorria, estava séria. Tomei coragem e perguntei se ela tinha algo a me dizer, que ela só ficar me encarando estava me irritando profundamente. Novamente ela sorriu tristemente, me olhando ainda mais intensamente e me disse com uma voz doce que a vida era muito difícil e complexa, que tudo poderia sair do controle rapidamente. Olhei para ela com ironia e dei um sorriso sarcástico. Perguntei se ela achava realmente necessário dizer isso logo para mim, tão vivida, tão sofrida, tão cansada.
Amorosamente ela se aproximou como se entendesse a minha frustração e disse que não queria me ofender e que sabia muito bem que eu conhecia a dureza da vida, mas também sabia que apesar de eu dizer para todos que eu entendia que para as boas coisas da vida serem apreciadas essa dureza se fazia necessária, no fundo não era bem nisso no que eu acreditava.
Como quem sabe do que está falando, a Solidão olhou ainda mais fundo dentro de meus olhos, me deixando quase em transe, e me disse que sabia que as coisas estavam muito complicadas nesse momento, que parecia que nada iria se ajeitar, sabia que eu estava cansada, frustrada, solitária, irritada, sem perspectiva, com medo... Mas que dentro de mim a Esperança era gerada, que a cada dia a Esperança crescia um pouquinho mais para apagar todo o caos que me acompanhava e que, em breve, a Esperança nasceria e se transformaria em Alegria.
Novamente ri incrédula com a fala dela. Como pode alguém me dizer que, apesar de tudo o que estou passando e sentindo, estou gerando Esperança, como isso seria possível? Gerar Esperança em meio ao caos e vazio era uma piada, ela só poderia estar louca... E pior, como ela achava que a Esperança se tornaria Alegria?
Realmente, esse anoitecer não tinha nada de reconfortante e revigorante e a Solidão só poderia estar maluca. Na verdade, maluca deveria estar eu por perder tempo falando com essa estranha.
Olhei para a Solidão uma última vez e segui o meu caminho, não queria continuar mais um minuto se quer perto dela. Ela estava conseguindo me tirar do sério. Já não bastava a noite não ser como sempre era, ainda tinha que lidar com essa Solidão irritante. Só poderia ser castigo!
Quando mais eu me afastava da Solidão, mais um frio terrível me dominava. Me sentia sozinha, vazia e anestesiada a cada passo que dava. Uma tristeza profunda me dominou e eu desabei a chorar enquanto acelerava os meus passos. Só queria que a noite acabasse, ela estava me assustando hoje. Olhava à minha volta desesperada, procurando por um feixe de luz para iluminar o meu caminho. Na pressa de me afastar da Solidão acabei me perdendo e não sabia mais para onde ir, estava com medo. No céu não havia estrelas e nem a luz da lua para iluminar a noite, todas as luzes da rua estavam apagadas. Não era de noite que elas deveriam estarem ligadas?
Estava cansada, não sabia para onde ir, nem o que fazer. Estava com medo, me sentindo sozinha e abandonada. Sem conseguir enxergar por causa das cachoeiras de lágrimas que escorriam pelos meus olhos, esbarrei em alguma coisa e cai. Quando olhei para ver no que eu tinha tropeçado, uma dor dilacerando me dominou, não tinha nada e nem ninguém ao meu redor. A noite, apesar das horas continuarem correndo, não acabava nunca, parecia que o dia havia morrido para aumentar ainda mais a minha agonia e não me trazer o conforto do cansaço e falta de vontade de nada. Só queria ter essas sensações de novo, a segurança de saber o que sentir e esperar.
Quanto mais o tempo passava, pior a dor ficava, não conseguia se levantar do chão, não saia voz para eu gritar por socorro, não havia luz para eu enxergar nada além da mais completa escuridão... Meu Deus, o que eu fiz para merecer isso?
Como se ouvisse o meu lamento, a dor parou e de dentro de mim a Esperança nasceu. Junto com ela as estrelas e lua apareceram para iluminar a noite, a calmaria me dominou e a sensação reconfortante que o escurecer me trazia surgiu novamente... Olhei para a Esperança incrédula, fascinada pela forma que aquele serzinho foi capaz de ser gerado em meio ao meu interior turbulento e caótica. A Esperança olhou dentro dos meus olhos e me dominou, chorei de felicidade quando ela sorriu para mim e pela forma que ela foi capaz de trazer luz à escuridão que me rodeava.
Conforme a felicidade me dominava, a Esperança se transformava... Não era mais a Esperança, minha pequena e bela Esperança, quem estava em meus braços, mas sim a Alegria. Nesse momento eu percebi que a Solidão estava certa sobretudo, eu realmente não acreditava que a dureza da vida era necessária para podermos apreciar as boas coisas, mas a Esperança, transformada em Alegria, veio para me mostrar isso. Ela foi gerada dentro de mim, apesar de todo o caos ela cresceu forte e saudável para dar lugar a algo lindo, um futuro fascinante apesar da dureza da vida.