Vidas Secas (Graciliano Ramos, com licença)
Apesar de saber que era necessário partir
A seca
Novamente e todo ano
A seca
Que não perdoa velho, moço, criança e nem gado
A seca judia e maltrata
Carrega almas e esperanças
E faz tudo cinza e triste
A seca veio
E
Apesar de saber que era necessário partir
Até a cachorra
Apenas pelanca e osso à mostra
Até a cachorra
Sabia
Era a seca mais cruel já vivida
E partiram
Necessário abandonar aquele lugar amaldiçoado
Lugar condenado
Lugar sem vida
Lugar modorrento e seco
Só terra batida
Nem um pingo de vida
Não
A vida se indo
Tudo se indo
Velho, moço, criança e gado
Para nunca mais voltar
Vida maldita
Vida mil vezes maldita
Arre!
Crê em Deus ou no demo
Que nessa vida doida de doída
Não cabe mais crença
Só luta e lamento
Ê Deus!
Cadê tu?
Apareça e venha
Ê Deus!
Cada ser paga em vida
A sina que é da morte
Vida maldita
Vida sem alma e sem vida
Arre! Mil vezes arre
Necessário ir embora
Necessário deixar pros urubus o gado
Arre! Gado maldito
Gado sem vida, sem alma
Vida maldita
Deus!
Eu te perdôo
Te perdôo por tudo que não fez
Não fez chegar a chuva
Não fez molhar a terra
Nada
Nada de nadinha
Não não
Só seca, só gado morto e urubu
Malditos
Malditos urubus!
A vida farta
Não!
Só seca e terra sem vida
Deus!
Eu te perdôo
Te dou meu perdão, Deus
Porque sou bom
Vai
Vai, Deus
Arre!
Ô boi, boi, boi
Ô boi
Boi boi boi
Ê boi!
Que venham Deus e o diabo
Que venham
Mas venham armados
Porque aqui
Só faca, facão e bala
Venha
Venha Deus
Com seus anjos e querubins
Venham
Em manto de seca
Ou em cama de palha
Gualzinho menino Jesus
E gado junto
Todos juntos
Ô boi!
Arre!
Arre, boi!
Terra seca
Terra sem vida
Terra maldita
Ô boi!
Ô boi, ô Deus
Terra dura, Terra sem vida
Necessário partir
Carregar o corpo e a alma
Ô boi!
Boi boi boi
Ê boi!
Sol forte
Sol queimando na pele
Ê boi!
Boi boi boi
Pele seca, terra seca
Gado sem vida
Tudo seco
Sem vida
Necessário partir
Ganhar estrada, beira de caminho
Partir
Ganhar esperança
Beira de caminho
Ō boi!
Boi boi boi
Um tiro de emboscada
Ou na cadeia a cumprir sentença
Ah
Se tivesse tornado jagunço
A correr por ai
trocando tiro
faiscando facão
Bem melhor
Mais digno
Do que ficar assim
Fugindo da seca
Da desgraça dessa vida
Vida bovina
Vida mofina
A seca
A seca impediu
Ficar e cuidar das cria
Ficar e sofrer sem água
Vida medonha
Vida sem vida
Ô boi, Ô Boi!
É certo?
É, é certo, é certo, Deus?
É certo os urubus se fartarem de gado
É certo, é certo
Aquelas pestes seguir o gado e a gente
Só esperando a queda?
É não
Claro que não!
Que é isso
Bicho besta fera urubu
Comer gente
Só que faltava
Urubu comer gente
E come!
Tem gente que diz que come
Nunca vi
Tem gente que viu
Necessário partir
Necessário seguir, fugir da seca
Nossa sina, que há de fazer?
Deus!
Venha, venha caminhar junto mais nois
Sentir o chão quente
A pela quente
Garganta seca
Seguir estrada, beira de caminho
Ô boi!
Ô boi!
Boi boi boi
O mundo é grande
É pra lá que vou
Sair da seca
Ter vida de gente, não de bicho
O mundo é grande
É pra lá que vou
Eu, mulher e as cria
O mundo é grande
O mundo é grande
Sei que é
É pra ele que vou
Correr o mundo
Correr esse mundo mundão
Esquecer a seca
O gado
O mundo é grande
Ah se vou
Vou sim
Vou sim
Mundo mundão
Vou sim
O mundo é grande
É grande
O mundo
O mundo é grande...