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Naquele lugar não havia estação. Fossem aquelas idas e vindas campestres não cantaria uma meninez de cores. Encontrei um riacho sem pedras derredor, negro; lá pousei e aprendi a nadar como um soldado magrelo. Pois que me tremia inteiriço ao imaginar a Cobra-grande das lendas amazônicas.

 

Infância sozinho é infância? Pois que andávamos eu e mais outros consanguíneos que me tiravam a solidão. E na ruralidade divertíamos no que seria para grandes responsabilidades.

 

À beira rio, éramos fugitivos paternais. O medo da proibição de pular do barranco para as águas barrentas não era o suficiente para nos evitar a diversão. Temíamos arraias como o “leite que faz mal com manga” (manga era um veneno para estômago de criança). Tampouco tal medo nos impedia de, às tardezinhas, descermos e nadarmos por lá.

 

As histórias miraculosas dos avós eram como uma escada para a fantasia. Ser criança até outros tempos era fantasiar, buscar estórias para vivê-las e se sentir como pequenos heróis. Talvez aquilo tenha se convertido em otimismo e persistência na fase adulta. Acreditar no sobrenatural em criança era uma sustentação para o sonho. Comigo fora assim, e até hoje sonho demasiado...

 

Pois que andando pelas chamas das velas ao apagar da luz – o gerador era fraquinho – vivíamos encontros com almas. Diziam-nos que, caso víssemos uma, deveríamos conversá-la, pois então ficaríamos paralisados como estátuas, e os pelos, eretos de arrepios. E seres lendários nos ocupavam no escuro, como fosse uma necessidade de sentir medo do que não existia. Há controversas, pois há quem defenda que o próprio pensar consiste numa concretização. Logo, tudo existe desde que pensado. O pensar é o princípio para a criação!

 

Lembro-me do dia em que fomos pescar. Meu primo levara uma cabaninha imprensada, pois éramos quatro. À poronga, nossas sombras entreassustavam-nos. Contávamos de tudo. Acabamos anoitecendo numa praia para baixo da floresta do Mapinguari, ser lendário temido pelos pescadores. Não éramos pescadores, mas o medo nos arrepiava como fosse algo desejável. (“Pescar”, para a meninez, era viajar na diversão da floresta. Para os pescadores à época, uma precisão, meio de vida e de passar adiante os atos de sobrevivência no ambiente interiorano). Contaram-nos que Mapinguari imita vozes, vozes de parentes ou amigos, como um ímã para nos prender à floresta adentro. Então, nem um dedo pra fora da cabaninha, nem pensar!...

 

A folha da bananeira, a palha do buritizeiro e até o tronco do bambu se transformavam em sombras assustadoras e sombrias. A razão não funcionava nessas horas de espanto. Que o sol voltasse depressa! Pois a insônia nos possuía até o óleo da lamparina se desgastar, deixando-nos na brisa fria.

 

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Kélisson Gondim
Enviado por Kélisson Gondim em 21/12/2022
Reeditado em 21/12/2022
Código do texto: T7676612
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