Solilóquios de uma Anomalia enredada - I

Começou ontem essa sensação, esse… instinto.

Sabe, uma alienação, como se você estivesse longe de si mesmo e inserido em si mesmo, ainda assim. Como se você se desse por conta de que é mais que o próprio corpo, embora seja ele também. Como se a vida externa tivesse pleno contato por meio dos olhos mais do que qualquer outra extensão corporal ou percepção sensorial.

Me dei conta disso ao estar com um livro entre minhas mãos. E, hoje pela manhã, ao sentir o aroma de alvejante, acordar e vestir toda a minha roupa, me faz pensar que o corpo/mente possuem alguma distinção mesmo. Aí, mesmo levantando, vestindo e sentindo as roupas abraçando meus quadris, cobrindo minhas partes, após deixar a sutileza da roupa de cama e do ventilador que alivia a sensação do calor desse verão, e indo ao banheiro, passando uma água no rosto, boca, segurando com minhas mãos e olhando no espelho… me alimentar de uma pequena fatia pura de pão caseiro me trouxe à realidade.

Estranho, né?

É interessante como um pequeno e médio pedaço de pão, entrando em contato com minha língua e saliva, me fez cessar a manifestação breve, ainda que seja, de uma distinção da minha mente com meu corpo. Parece que coisas da vida tão simples são perdidas em rotinas excruciantes de artificialidade, e coisas tão complexas e anormais tomem a totalidade de nossos envolvimentos familiares, sociais, pessoais… de modo que o prazer simples de um pão, em fatia simples, traga tanta saciedade?

Enquanto eu pensava nisso tudo, me dei conta que saciedade era o que eu procuro. Saciedade. Não uma embriaguez, não uma gula, não uma lascívia. Apenas saciedade. Será que eu acabei não confundindo extremidade com simplicidade?

Acredito que pode ter sido este mesmo o caso.

Sabe, contentamento não é algo que consigo ver de forma positiva tão naturalmente quanto saciedade. Se contentar com algo – o que é isto? Posso me contentar com uma situação de puro desespero e sofrimento, ou me contentar com uma situação de puro prazer e divertimento. “Que bom que temos isso”. Contudo, não vejo saciedade da mesma maneira. Tenho vontade de dormir, de me banhar, de deitar num corpo quente e feminino, de experimentar novos métodos da tríade malte-lúpulo-cevada. Não é exagero, é apenas buscando me saciar.

Mas, ainda assim… toda a vez que procuro me saciar, parece que há algo além disto tudo que penso ou cogito, percebo ou sinto. Me parece que há, para além de tudo aquilo que existe, há um movimento deste evento todo chamado saciedade. De todo o modo, seja como for, aquela pequena fatia de pão trouxe a solução de que me sentia bem, único no universo, e que aquela fatia simples de puro pão, sem mel, sem condimentos, nu aos meus olhos e demais sentidos, comunica a mim que tudo o que procuro saciar é... bem possível. Nem por isso é fácil. Mas, sendo possível, tal qual é possível a existência de uma fatia de pão, a vida não é diferente disso. Apenas distinta. E que posso me acostumar bem com tudo isso, agora e novamente. Tal como será logo mais, e outra vez, também.

Dito isso tudo… preciso estar satisfeito, mas, do quê, primeiro?

Vamos descobrir.

ALIVAVILA
Enviado por ALIVAVILA em 11/12/2022
Reeditado em 04/03/2023
Código do texto: T7669662
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