O grito do silêncio
E assim se deu. Consumada a sentença, o réu, um homem de todos conhecido, como quem não entende o que se passa, em silêncio entrou, em silêncio ficou por todo o julgamento. Ouvidas as testemunhas, divergências saltavam às caras. Houve quem dissesse que o homem fora visto às redondezas, porém, nada mais acrescentava. Por outra, havia quem buscasse, numa memória visivelmente confusa, detalhes que não se conectavam. Tudo era confuso. Nada fazia sentido. O homem, em silêncio ficava. De sua parte, apenas o silêncio como sinal de uma indisfarçável incredulidade. Estava claro, ao menos assim aparecia e parecia, que da possibilidade daquele homem não ser a quem se atribuíam os fatos mencionados nos autos, era algo que, àquelas alturas - depois do espetáculo que se fez por dias e dias, sem descanso e trégua, mesmo no horário nobre - estava claro, sem modéstia e discrição do órgão acusador, estava evidente que a condenação seria o coroamento da dedicação de uma camarilha sem escrúpulos. Condenar aquele homem, ao menos assim parecia, era a vingança de uma parte de uma sociedade que não aceitava e não aceita, desde que outrora rompeu-se o vergonhoso grilhão, e que, a cada possibilidade de desforra, sem escrúpulos, arregaça as mangas e põe-se em movimento. Tudo era estranho. Nada, a não ser os movimentos teatrais dos acusadores, chamavam mais atenção que o silêncio do homem. Sua postura, séria e firme, para àqueles que o conheciam, era sinal inconteste de que, mesmo injustamente acusado, conseguiriam fazê-lo dobrar-se. Aquele homem, diante de uma camarilha sedente de vingança, era mais digno que toda gente e suas becas pretas, com cordões dourados. A altivez saltava do seu semblante, enquanto, do outro lado, do espaço acusatório, um punhado de vingadores sociais, como quem busca aprovação, olhava por ao redor; mas nada, nada e ninguém lhes dirigiam o olhar. Ao passo, e ao contrário, o homem acusado, e em silêncio e altivo, como quem possuído de alguma força interior, resplandecia por todo o recinto. E veio a sentença. Em silêncio o homem ouviu sua penitência. Calado entrou, calado ficou. A injustiça fora feita. De tantas que ainda ocorrem, aquela, como tantas mais, não cessará a sedente vontade de uma sociedade vingadora, de uma sociedade que ignorante que é de sua história, como uma criança mimada no setor de brinquedos de uma grande loja, não consegue compartilhar o espaço, quer é de todos e para todos. De uma sociedade cega e estúpida, porque mimada, que não enxerga no Outro a possibilidade de uma novo devir, de um novo momento, e, por isso, se comporta como a mimada criança no setor de brinquedos, porque acha que tudo ali é dela. Do mesmo age essa sociedade, porca e hipócrita, que presa ao quê de mais abjeto numa sociedade com mentalidade escravocrata, não consegue, porque presa a esse pensamento, como a criança egoíca na loja de brinquedos, compartilhar os espaços públicos. Para ela, e nada mais, todo espaço público é seu. Para manter como um bem privado, sem titubear, essa sociedade, repita -se, escravocrata até a alma, não vacila em lançar mão de meios, com os quais, sem eira nem beira, e sem constrangimento, mantém seu domínio e poder. Assim, usar de meios construídos em bases jurídicas, para dar um ar de imparcialidade, nada mais do que reafirmar seu poder. Condenar um inocente não altera o projeto inaugurado desde que se assinou uma famigerada lei, mas que, para manter os dedos de uma classe dominante, permitiu que se perdesse os anéis. E nesse faz de conta, ainda se condena inocentes como um aviso de que tudo muda pra continuar do jeito que está.