Matulão
Senti a areia escapar entre os dedos e quando olhei era sangue. Era sangue porque eu nunca soube como parecia a areia. Nunca senti ela entre os dedos, nem o soprar do vento que faz doer o olho.
Mas senti o cortar da pele, senti o coração bater compassado e descompassado que nem ijexá. Senti o gritar mudo de não ter nada a dizer. .
Senti as paredes de dentro infiltrar e vazar pelos zói, senti a valsa sussurrar até pausar o som, diminuir o tom, não mais fazer falta.
Coloquei dentro do meu matulão o único pedaço de chão que sobrou, e fui me embora desvalido. Fui prum lugar que não tivesse areia pra escapar dos dedos, prum pedaço sem água de vazar pelas órbitas e sem valsa.
Sem valsa.
E então me pus a tomar nota de quem eu era.
Sou eu quando arranco o miolo do pão e faço bolinhas com a mão
Sou eu quando deixo um tiquinho dágua no fundo do copo
Sou eu no roer das unhas
No esquecer as coisas
No café forte em demasia
No chorar pra dentro
Na bagunça do quarto
No depois eu vejo
Nas reticências e superlativos
Sou eu quando piso no chão da mesma forma que você
Sou eu quando não piso no chão da mesma forma que você
Sou eu quando meu rastro não é pegada, é linha contínua.
Sou eu quando minha dor não é efêmera é fio que puxa e leva pra sempre.
Sou eu quando as coisas vão e eu fico
Sou eu quando me sinto arrastar por escadas e os vincos fazem doer os joelhos, deixam os dedos dos pés em carne viva, degrau por degrau.
Sou eu quando sinto gosto de sangue na boca, e não me assusto
No sentir a respiração pastosa e difusa a meia noite e vinte, e não saber como resolver.
Sou eu
Não queria ser eu
Mas ao mesmo tempo "Eu" é a única coisa que eu sei ser.
Assim tá bom.