Memórias amorosas de canções, operetas e óperas.

Sentávamos lado a lado perto da janela, ele, na cadeira de balanço, eu, numa cadeirinha de criança bem antiga. À nossa frente, a vitrola e as músicas em LP`s que com o passar dos anos foram substituídos por um som e os CD`s. A lista de reprodução praticamente imutável, não nos entediava e muito menos deixávamos de ouvi-los. Todos os dias, num dado momento, calava-se a TV, caso estivesse ligada, e o som das vozes maviosas dos cantores, inundavam os corredores e aposentos da casa, e essa “qualidade do ar” determinava uma atmosfera segura de muito boas e variadas sensações. Melhor era quando esse pai tenor simplesmente cantava ou cantava junto com seus ídolos. Eram óperas, operetas, e as canções napolitanas dentre outras. A sessão se iniciava com as canções ou operetas, e no auge, os trechos de óperas eram apreciados.

Nas napolitanas figuravam: Beniamino Gigli, Giuseppe Di Stefano, Titto Schipa, e na transição para os CD`s, a grande maioria era de Luciano (Pavarotti) com amigos, grandes orquestras, regravações. O repertório continha via de regra: O sole mio, Torna a Sorriento, Mamma, Funiculi-Funicula (uma alegria!), Marechiare, Volare, Core’Ngrato, O Paese D’`O sole, La Donna È Mobile (provocava risadas), E Lucevan se Stelle (da ópera Tosca, causava soluços), No ti scordar di me, Parlami damore Mariù, e a incomparável Nessum Dorma. Ao conhecer Andrea Bocelli, se encantou com o “Canto Della Terra”, “Com te partirò” e Rapsodia. Da brasileira Zizi Possi, ouviu o CD Per Amore (1997) e sempre sorria quando a música era “A Vucchella”.

Com voz privilegiadíssima ele entoava de forma especial o “Nessum Dorma” (Ninguém durma), ária do último ato da ópera Turandot, obra inacabada de Giacomo Puccini (1926). Atingindo as notas agudas de grande extensão vocal, impressionou todos-as que o ouviram, e foi com essa voz que acalentei o melhor do meu mundo por muitas décadas. Posso afirmar que essa música era sua atuação prima, ainda que brilhasse em todas. Ele cantava sem precisar contrair a musculatura do rosto, ele cantava como se estivesse falando ou sorrindo.

Havia vezes das melodias encherem a sala e quem quisesse poderia cantar e dançar porque as valsas eram rodopiantes. Tempos de Roberto Audi com o maravilhoso LP “...E as Operetas voltaram!”, onde conhecidos trechos de “operetas europeias entrelaçadas com operetas americanas foram em sua maioria, vertidos e adaptados para o português pelo compositor Lamartine Babo, que foi também produtor do disco; a orquestra, do Maestro Guaraná”**. Daria tudo para recuperar essa seleção de músicas! Ainda sei muitos trechos decor. Não entendo porque essa obra magnífica nunca foi preparada em CD. Mas o álbum e as músicas podem ser encontrados à venda para quem tem toca discos.

Do repertório nacional papai cantava Pixinguinha: “Rosa” e “Carinhoso”. Do Noel, “Três apitos”, “As pastorinhas”, e uma lista de marchinhas carnavalescas que ele entoava e uma vez abraçou as filhas e saiu dançando no meio do salão no baile de Carnaval do clube. Sabíamos todas, desde Chiquinha Gonzaga com “Ô abre alas”, “Mamãe eu quero”, “Aurora” de Mário Lago, “Allah-Lá-Ô”, “Me dá um dinheiro aí”, “A Jardineira”, “Cachaça”, “Saca-rolha”, “Chiquita Bacana”, “Máscara Negra” (de Zé Keti, uma das que ele achava mais bonitas), “Ta-Hí” Carmem Miranda, “Bandeira Branca” (outra que ele gostava muito), “Touradas de Madri”....Porém, ao primeiro acorde de “Doutor, eu não me engano”, saia da pista imediatamente, claro, a música era para corações corintianos e ele era genuinamente palmeirense.

Uma das belas canções que ele gostava de entoar era anunciada antes e em voz alta à minha mãe:- “Essa é para você mãe”, e se ouvia o maravilhoso “Eu sonhei que tu estavas tão linda”. Gravada por vários cantores, era bela na voz de Carlos Galhardo. Outra melodia maravilhosa que ele adorava cantar era “Stardust”, de Hoagy Carmichael, cantava na versão brasileira, letra de Lamartine Babo com o título “Coração Iluminado”. Também muito bonita na voz de Francisco Alves. Interpretava lindamente “Laura” do João de Barro Braguinha e Alcyr Pires Vermelho (1959), bela é também a gravação de Lúcio Alves.

Embora ele pudesse cantar sem acompanhamento algum, certa feita, dois de seus sobrinhos experts em som, escolheram as melhores gravações de algumas melodias, retiraram a voz original, e papai gravou com a excelente orquestração. Ficou muito bom, e temos graças a estes primos este registro familiar precioso. Na rádio local ele também cantou algumas vezes. Participava dos corais das duas cidades onde morou, e em muitas apresentações foi solo, e animadamente viajava para os encontros de corais.

Ouvi de Dorival Caymmi, “João Valentão”. Mostrei a ele e ele ficou encantado com a letra cujo final justamente me fez traze-la para ele: ...”e assim, adormece esse homem que nunca precisa dormir para sonhar, porque não há sonho mais lindo que sua terra, não há!” Cantarolei muitas vezes a pedido dele esta canção. Um dia chorou. Foi um homem de uma geração mais antiga, e que contrariando os costumes, se emocionava e chorava.

Ganhamos dele um álbum “La Bella Musica Italiana com 117 melodias Que todos amamos”, estava assim o título na capa. Os discos eram ótimos, o número 7 tinha o título “Sucessos de nossos dias”, outros, “Cantores autores”, “As grandes vozes da Itália”, enfim, mas ele não apreciava “cantanti italiani moderni” embora preferisse estes ao que ele chamava de “invasão cultural norte-americana das nossas rádios e música”.

Elegemos uma canção certa feita com os primeiros minutos iniciados por um coral gregoriano ou quase isso, e pedimos “ouça papai, é muito lindo, você vai gostar!” Reticente, ele enfim aceitou ouvir, ficou impressionado, mas, nem bem iniciou o elogio, adentra abruptamente a voz eletrizante de Rita Pavone e dispara: “E dal cucuzzolo della Montagna/ Com la neve alta cosi/ Per la valle noi scenderemo/ Ah, com ai pedi um paio di sci, sci...”. Foi como se tivesse caído um raio no colo dele, e enquanto as crianças se matavam de rir, ele dizia, “desliga isso, é horrível”. Morremos de rir juntos e nunca mais conseguimos enganá-lo com os “sucessos contemporâneos”.

Não que papai não gostasse da nossa música brasileira ou de outras, porém, tinha a sensação de que ele precisava ouvir e ouvir as prediletas, italianas, como se o tempo (dele) fosse acabar e ele estivesse sempre por um fio para preencher o que nunca, em verdade, era preenchido: o enorme prazer e a necessária emoção que as significativas músicas lhe causavam. Esse amor à música ele nos passou, não fico um dia sem ouvir músicas, e sempre considerei um privilégio sentar-me perto dele e ouvir repetidamente, em especial, os trechos de óperas que amávamos.

O autor preferido sempre foi Giacomo Antonio Puccini. O auge das audições, os trechos de La Bohème. Antes dos CD`s, tínhamos os LP`s em vinil, em conjunto de caixa, som HiFi, da RCA Vitor, com Victoria De Los Angeles, Bjoerling, Merrill, Amara e Giorgio Tozzi. Há varias versões de capa, a nossa é uma pintura da protagonista vestida de azul, com chapéu azul, e laço preto na cabeça e enlaçando o pescoço. As mãos dela dentro de um regalo de pele com lã branquinha.

La Boèhme retrata um grupo de artistas que vivem com dificuldades no Bairro Latino de Paris em 1830, sacrificando suas vidas pela arte, e cada um com sua inquietude intelectual própria: Rodolfo é poeta, Marcello, pintor, Colline estuda filosofia; Schaunard é músico. Ainda, Musetta, uma cantora, e, uma frágil e ingênua costureira de flores de papel, chamada Mimi. Vivem num mesmo edifício pobre. O frio de inverno e a falta de aquecimento no quarto faz com que os amigos saiam para beber, mas Rodolfo deve trabalhar, e fica. Uma batida na porta traz Mimi que pede por ajuda para acender uma vela. Porém, ao tentar acendê-la, ambas as velas se apagam, e aí começa a magia. Ao buscarem as chaves às escuras, suas mãos se encontram e passam a contar suas vidas. ***

Reproduzo os trechos mais ouvidos e celebrados por nós. A ideia é destacá-los, deixa-los à mão.

Che gelida manina

Rodolfo canta:

Che gelida manina, se la lasci riscaldar **** Que mãozinha gelada, deixe-me aquecê-la

Cercar che giova? Preocupa-se procurando algo?

Al buio non si trova. No escuro não se encontra

Ma per fortuna, è una notte di luna. Mas felizmente é uma noite com luar.

E qui la luna... l'abbiamo vicina. E aqui a lua se faz perto de nós.

Aspetti, signorina. Espera senhorita,

Le dirò con due parole. Dir-lhe-ei com duas palavras.

Chi son? chi son!... e che faccio. Quem sou eu? quem sou e o que faço.

Come vivo?... Vuole? E como vivo ? Vivo!

Chi son? Quem sou?

Chi son? Sono un poeta. Quem sou? Sou um poeta.

Che cosa faccio? Scrivo. O que eu faço? Escrevo.

E come vivo? Vivo. E como vivo? Vivo!

In porvetà mia lieta. Contento-me na minha pobreza.

Scialo da gran signore. Mas esbanjo, como um príncipe

Rime ed inni d'amore. Rimas e canções de amor.

Per sogni e per chimere. Em sonhos e fantasias.

E per castelli in aria! E até castelos no ar.

L'anima ho milionaria. Minha alma é milionária.

Talor dal mio forziere. Mas do meu cofre

Ruban tutti i gioelli. Todo o meu tesouro foi roubado.

Due ladri: gli ochhi belli. Por um par de belos olhos.

V'entrar com voi pur ora. Contigo chegaram por ora.

Ed i miei sogni usati. Todos os meus sonhos habituais.

E i bei sogni miei tosto si dileguar! Todos os meus sonhos adoráveis.

Ma il furto non m'accora. Mas o furto não me abalou.

Poichè Porque

Poichè v'ha preso stanza... la speranza! Porque você trouxe a doce esperança.

Or che mi conoscete, parlate voi deh! Parlate. Agora que me conhece, fala-me de você.

Chi siete? Quem é você?

Vi piaccia dir? Do que você gosta?

Mi chiamano Mimi

E Mimi se apresenta:

Sì. Mi chiamano Mimì, Sim. Me chamam Mimi

Ma il mio nome è Lucia. Mas meu nome é Lúcia.

La storia mia è breve. A minha história é breve.

A tela o a seta Uma tela ou uma seda

Ricamo in casa e fuori... Bordada em casa ou no exterior...

Son tranquilla e lieta Sou tranquila e feliz

Ed è mio svago E o meu passatempo

Far gigli e rose. É plantar lírios e rosas.

Mi piaccion quelle cose Eu gosto das coisas

Che han sì dolce malìa, Que tem um doce feitiço

Che parlano d'amor, di primavere, Que falam de amor, da primavera

Di sogni e di chimere, Dos sonhos e fantasias,

Quelle cose che han nome poesia... Essas coisas que tem nome poético...

Lei m'intende? Você me entende?

Mi chiamano Mimì, Me chamam Mimi.

Il perché non so. O porquê não sei

Sola, mi fo Sozinha vou

Il pranzo da me stessa. Almoço sozinha

Non vado sempre a messa, Não vou sempre a igreja

Ma prego assai il Signore. Mas sempre rezo ao Senhor.

Vivo sola, soletta Vivo só, sozinha

Là in una bianca cameretta: Lá em um quartinho branco:

Guardo sui tetti e in cielo; Olho sobre os telhados e o céu

Ma quando vien lo sgelo Mas quando vem o degelo

Il primo sole è mio O primeiro sol é meu

Il primo bacio dell'aprile è mio! O primeiro beijo de Abril é meu!

Germoglia in un vaso una rosa... Brotos de rosa em um vaso...

Foglia a foglia la spio! Folha a folha cultivo

Cosi gentile il profumo d'un fiore! Como é suave o perfume de uma flor!

Ma i fior ch'io faccio, Mas as flores que eu cultivo,

Ahimè! Non hanno odore. Coitada de mim! Não tem perfume.

Altro di me non le saprei narrare. Outras coisas de mim não sei contar.

Sono la sua vicina che la vien fuori Sou sua vizinha que sai afora

D'ora a importunare. E que agora está lhe importunando.

E o dueto romântico, do final do primeiro ato: O soave fanciulla *****

(Considero singular a interpretação com Anna Netrebko junto com Jonas Kaufmann (******), mas é lindíssimo também com Pavarotti.)

Rodolfo:

O soave fanciulla, o dolce viso Doce donzela visão mais doce!

Di mite circonfuso alba lunar Banhada pelo brilho suave de um raio de luar

In te, vivo ravviso il sogno Em você, em vejo ganhar vida um sonho

Ch'io vorrei sempre sognar! Que eu desejo sempre sonhar!

Mimi:

Ah! Tu sol comandi, amor! Ah! Só tu comandas, amor!

Rodolfo e Mimi:

Fremon già nell'anima Na profundidade de minha alma

Le dolcezze estreme A doçura extrema

Nel bacio freme amor! No beijo treme o amor!

Oh! Come dolci scendono Oh! Tão docemente caem

Le sue lusinghe al core Suas palavras ao meu coração

Tu sol comandi, amore! Só tu comandas, amor!

Mimi:

No, per pietà! Não, por favor!

Rodolfo:

Sei mia! Seja minha!

Mimi:

V'aspettan gli amici Seus amigos te esperam

Rodolfo:

Già mi mandi via? Já me mandas embora?

Mimi:

Vorrei dir... Ma non oso Eu gostaria de dizer... Mas não me atrevo

Se venissi con voi? Se eu vou com você?

Rodolfo:

Che?... Mimì? O quê?... Mimi?

Sarebbe così dolce restar qui Seria tão doce ficar aqui

C'è freddo fuori Está frio lá fora

Mimi:

Vi starò vicina! Estarei ao seu lado

Rodolfo:

E al ritorno? E quando voltarmos?

Mimi: Curioso! Curioso!

Rodolfo:

Dammi il braccio, mia piccina Dá-me o braço, minha pequena

Mimi: Obbedisco, signor! Eu obedeço, senhor!

Rodolfo: Che m'ami di' Diga que me ama

Mimi:

Io t'amo! Eu te amo!

Rodolfo e Mimi:

Amore! Amor

Puccini anotava todos os movimentos cênicos em suas partituras, em sintonia perfeita com a música. Puccini é considerado o maior compositor de óperas da Itália de geração posterior a Verdi e a obra que deixou é imortal. La Boèhme foi composta em 1895.

Há outras belas óperas de Puccini. A música “O Mio babbino caro” (Oh, meu paizinho querido) da ópera cômica Gianni Schichi (1918) que em minha opinião é esplendorosa na interpretação de Montserrat Caballé, é uma das músicas mais lindas de Puccini, junto com “Nessum Dorma”. Pavarotti era o cantor predileto do papai, ele o elogiava a cada aparição, e era o que o fazia assistir um vídeo mesmo quando a apresentação incluía os “amigos” do tenor. O belíssimo “Miss Sarajevo” (1995), interpretada por Brian Eno + U2 (Passengers) e Pavarotti, papai assistia, porém, acabava mesmo reverenciando o Luciano”. Especial consideração ele teve com o impecável CD Barcelona de Freddie Mercury e Montserrat Caballé, as belíssimas “How can I go on” e "Guide me Home”.

Nas passagens mais emotivas e belas valorizadas pelos agudos e letra, tal como, Rodolfo em “Che gelida manina”, quando ele conta sobre ser poeta e diz a Mimi “Porque você trouxe a esperança”, ou, Mimi quando diz “Mas quando vem o degelo, o primeiro sol é meu, o primeiro beijo de April é meu!”, e o dueto final em “O soave fanciulla”, meu pai fechava os olhos e apreciava cada acorde, buscando a percepção mais intensa da harmonia e da melodia. Marca registrada dele, da casa dele, ouvir quase que diariamente as músicas que o acompanharam por toda vida.

A música tornava aquela sala, aquele canto de sala um grande teatro musical, e imperiosamente inundava nosso dia-a-dia e me inunda permanentemente daquela sensação de transporte para outros mundos, basta fechar os meus olhos.

Música, música, música! Momentos de sonoridade, de reversão dos humores, de estética, de manifestação cultural, de auto compreensão, de instantes de nossa aproximação afeiçoada, dele pai e minha, filha, numa dimensão de momentos de felicidade, harmonia e beleza.

Ao meu paizinho querido. (Al Mio Babbino Caro)

Aos descendentes dele, especialmente aos que o conheceram menos.

Disponível em http://www.famosos que partiram.com/2016/02/roberto-audi.html?m=1

**https://immub.org/álbum/e-as-operetas-voltaram

*** http://www.labellezaescuchar.com/2019/07/puccini-la-boehme-o-soave-faciulla.html m=1

****Fonte: Musixmatch. Compositores: Library Arrangement / Giacomo Puccini.Letra de La Bohème: “Che gelida manina” © Bruton Music Ltd.

*****Fonte: Musixmatch. Compositores: Giacomo Puccini.Letra de “O soave fanciulla” (Rodolfo/Marcello/Mimì) © Bruton Music Ltd., Casa Ricordi Srl.

******Kaufmann and Netrebko. O soave fanciulla- La Boéhme.http://www.medici.tv