Carta aberta às veias da história

Por longo tempo acreditei que as estranhezas de mim para o mundo e do mundo para mim advinham de qualquer espécie de pressentimento, qualquer coisa fora da dimensão palpável. Hoje percebo que é tudo literatura. E assim sempre o foi. Isso porque enredos, enlaces e desenlaces sempre me foram caros. Amei a dança das palavras a contornarem os sentidos desde que avistei a primeira letra. Posso dizer que sinto enredos, reconheço padrões de personagens, comportamentos, apreendo pistas de desenrolares. É, talvez seja isso. Deve ter sido isso. Muito antes daquele outubro de 2018, eu via receosa a linguagem corporal da mão tão visível da malquerença. Sempre estendida, à espera de que lhe desse movimento, sempre à espreita, a um sussurro de quem pudesse golpear. Naquele outubro eu soltei, junto ao meu grito arrasado, que “muita gente ia acabar morrendo”. Não sabia que seriam em torno de 700.000 delas, tampouco sabia das pessoas queridas que dentre elas estariam. Mas a história já havia nos lido tantos enredos com os mesmos personagens de referência, os mesmos meandros, os mesmos requintes de impiedade. Sabemos que os roteiros surpreendentes são raros e que as histórias que parecem fazer mais sucesso são aquelas que se repetem e recontam umas as outras. Diante dos meus irmãos de espécie votando mais uma vez contra os meus irmãos de espécie, desvairei-me a tentar deixar para trás. Fui me embrenhar por outros terrenos, fui me empenhar a me trazer outros ares. Mas nada que seja nosso nos deixa. E me é próprio saber enredos, ver a história. E a cada amargor engolido e devolvido, retorna-se à casa de si mesmo mais nítido e assentido. Os dias todos são como sempre foram todos os dias de outono em São Paulo, são quatro estações que nos cobrem ao longo das horas e descobrem do coração o que mais teme, espera, desenha e cultiva. Morreram tantos que se foram em corpo e tudo o mais, e morreram também as pequenas pessoas amáveis aprisionadas em gigantes de ressentimento. Pessoas que foram, em algum ponto, possíveis, criaturas que um dia chegaram a dançar uma dança colorida, pequenos seres em cativeiro na escura colina do ferir-se. Os dias são de se lembrar dessas pessoas mortas em vida e sentir saudade da primavera que um dia houve em seus corações. Os dias são de esconder a cor mais quente das nossas roupas, lábios e unhas, irrigando, contudo, tudo o que nos atravessa e perdura enquanto há vida. Os dias são de nos sabermos os seres mais terríveis se olhando por entre os arames farpados que separam os truculentos e os invencíveis. Os dias são de falar baixo pelas ruas, não sabendo a quem temer, temendo a todos. Não o temor da reverência, este já adormecido em nós por falta de agente merecedor, mas aquele da ameaça, do sobressalto. A dias de se abrir primeira porta pela qual o primeiro novo filete de luz passará, são ainda dias de calcular como viver a alegria, ainda que momentânea, sem brincar, rir com a garganta, pisar forte sobre o chão, ovacionar a própria vitória, entoar hinos apaixonados. E, ainda, meus caros, é em dias tão sérios que vem a chance de um contentamento, tão sérios são estes dias que o deleite se deita sobre o leito do preocupar-se, ocupando-se quase todos os seus risos de sisudas aferições. Os enredos passados nos contam a história da preferência por se repetirem histórias. E todos os nossos enredos nos contam sobre a recusa dos inovadores, dos humanistas, dos atormentados. Sim, a glória dos que se permitem sentir atormentados pela brutalidade. A estes, a nós, o desejo que possamos seguir nos reconhecendo, camuflados pelas ruas. Para nós, a ardente, calorosa e atrevida labareda da vida.