GAIVOTAS AO VENTO

Um dia irei rasgar minhas lembranças com a tesoura do tempo

e me desfazer em pedaços tão pequenos que nem as formigas

ou os cupins poderão ler o que um dia me foi escrito por dentro

Até meus furos e buracos serão esfrangalhados e estilhaçados

não me sobrando nada que evoque minha repentina presença

e todos continuarão a caminhar indiferentes ao que me tornarei

um sumido que se foi no desaparecer inclusive de sua ausência

Mas se algum poema, verso ou estrofe me escapar

pode ser que alguém me leia em inesperada ocorrência ou acaso

e eu, então, serei reaparecido, renascido e ressuscitado

enquanto aqueles olhos não me esquecerem no breve instante

em que me fixarei no interior das pupilas

e nas paredes transparentes de suas usadas retinas

Um dia irei dilacerar minha memória

jogando-a do alto do meu apartamento

e vê-la ser levada pelo sopro do oxigênio

fatiada voando como se fossem gaivotas ao vento

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 19/09/2022
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