Há dias

Há dias que sou simples como a natureza, leve como o vento, nítido como o céu; nessas horas cálidas, em que o único sentido das coisas é, nelas, não haver sentido nenhum, sei a verdade - não como quem sabe - e sim, como quem sente e é feliz por não pensar senão com os sentidos. Mas há dias que esse mesmo modo de ser pesa-me os ombros e ando pelas estradas como um burro de carga carregado de chumbo; nessas horas anseio as dimensões oníricas das ilusões míticas, o poder crer em Deus, na alma, na essência, no sentido, uma saudade sombria do que já ultrapassei mergulha-me no vácuo. Então, para me consolar, finjo que creio em Deus, ou melhor, em deuses, e apostrofo a todos eles para que olhem por mim e me concebam um fim tranquilo quando chegar a diligência do abismo. Toda minha vida parece-me um luto, toda natureza ao meu redor chora num lamento fúnebre a morte antecipada de tudo, imersão num limbo de sensações confusas, choro sem lágrimas, resignado, hora em que não serei mais do que a ausência de um corpo...

Fiódor
Enviado por Fiódor em 16/09/2022
Reeditado em 21/10/2022
Código do texto: T7607100
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