Devaneio
Lavar louça, além de terapêutico, é um ótimo exercício pra [memória] lembrar das coisas...
À medida que eu esfregava um prato, uma colher, um garfo, uma faca - minha mente recordava o pato e o ganso que o vizinho criava, que corriam atrás de mim; as flores que eu colhia (roubava) no jardim da vizinha; o grito que eu dava pra chamar a moça surda da quitanda ou o da alma; a tarde que se esvaziava na janela da cozinha; recordava o diabo do galo que acordava a vizinhança toda; e também na lembrança passavam as vacas e os grifos a ruminar a pastagem terna, tenra, clara, cândida... quase eterna - não fosse fugaz - da infância.
Lembro-me de lembrar que no quintal de casa a paisagem consistia numa laranjeira, onde meu pai pendia gaiolas em suas galhas cheias de espinhos. De maneira que outros passarinhos - pardais, rolinhas, rouxinóis, andorinhas (andorinhas?), bem-te-vis, lavandeiras - eram atraídos pela cantoria do galo de campina, papa-capim, sibito, sabiá, chorão... (se bem que um poeta já dizia que um pássaro preso canta não; lamenta, sofre, chora). E eu me perguntava por que uns passarinhos viviam presos, outros não. Porque, na minha inocência de criança, eu não entendia que era possível alguém ser preso só porque canta. Ainda não conhecia Caetano... Mas não há encanto se se canta na prisão... Há tristeza, pranto. Há desencanto. O homem tem inveja do canto ou do vôo? Ou ambos? Hoje, mais ajuizada, ainda cultivo alguma esperança na humanidade - fé na Natureza. Mas, às vezes, há as indelicadezas de uns que me causam surtos, sustos, e, de súbito, fico totalmente cética. Cega. Séria...
Será que dá pra sentir daí o cheiro do café? Pois é... Há pouco botei no fogão... Vem, senta-te comigo e vamos conversar sobre as doçuras e amarguras da vida? Ou, se preferires, tomemos um chá e fiquemos apenas a contemplar o que não é dito... Um olhar, um sorriso, um suspiro, um pestanejar... Ah, essa alquimia divina da água, do fogo, da panela, do pó... fervura essa que culmina numa bebida tão bela - pura sinestesia, pura saudade daquela gatinha que roçava o corpo nas minhas pernas pedindo meus mimos... ou comida?
Passando a vassoura na sala (outro afazer saudoso com fins curadores), lembrei-me da professora... não que ela fosse uma bruxa; pelo contrário, era uma santa mas destas que não compactuam com a inquisição.
Pois então, eu tinha uns 9 anos, a sala de aula era repleta de outras crianças barulhentas e acanhadas, como eu. A professora perguntou-nos qual animal - se assim nos fossem dadas essa graça de escolher - a gente queria ser. São tantos, não é? Águia? Coruja? Tubarão? Cavalo? Leão? Touro? Gavião? Galo? Gato?... Qual! Eu respondi que queria ser um pardal. Os demais alunos escolheram aqueles outros. Peço perdão por não reproduzir os diálogos, mas digo apenas que a professora ficou surpresa e me indagou o porquê de um animalzinho tão, digamos, sem nobreza... Eu poderia ter dito, com certeza, que é na simplicidade onde mora a nobreza, a beleza da vida. Pobreza de espírito pensar que só as grandes coisas são nobres... não é? Mas eu era pequena... deixa, não mais interessa. Então lembrei das gaiolas do meu pai, e dos pássaros em volta, e disse-lhe "a senhora já viu algum pardal preso?"...
Há caçadores e 'caçados' - e há pássaros que só não encantam porque cantam engaiolados. Fato! Perdoe-me à redundância, é porque o assunto tem mais relevância que um erro grave de crase. Perdão: devaneios tolos…
Na classe, respondi que queria ser um pardal porque, mesmo sem cantar, poderia viver livremente pelos ares e chilrear à vontade pelos chãos - não nas mãos de algum ladrão de liberdade. Acontece que haviam outras crianças, também da minha idade, comandadas por um rapaz mais "maduro", armados de fundas e munidos de pedras, atirando nos bandos de pardais, nas lagartixas nos muros, pombos, sem remorso, sem vergonha, sem saber; apenas por maldade ou sabe-se lá o que...
Ideia pra um poema:
A pedra voa, cai uma pena, e os pardais fogem das pessoas pequenas.
Agora, bebendo um suco de laranja industrializado, lembrei-me do pé-de-laranja do meu quintal: hoje não existe mais; foi cortado pra dar lugar a outra casa... Que saudade do suco natural!
Uma máxima:
Podem apagar uma andorinha mas não o brilho do sol.
Uma música:
"...Eles são muitos, mas não podem voar..."
Uma ladainha:
"Sabiá cantou lá na laranjeira..."
Um livro: "Meu pé de laranja lima".