A noite é traiçoeira
A noite é traiçoeira.
Ela não some com as cores de uma vez, não furta a luz de supetão; não é tão escandalosa assim.
Não.
Ela trama em conluio com os segundos, instantes que nem se deixam ver.
E estraga as cores e estraga a luz; suga a vivacidade de uma, raspa o frescor da outra. Quando se vê, restaram alaranjados gastos e secos, o verde mais verde apodrecido sob a lógica das coisas velhas.
A noite é traiçoeira.
Porque entra e fica. E sem fazer muito barulho, sem criar alarde - só se escuta os crepitares de insetos cascudos revirando folhas secas e galhos quebrados. A visita que se senta na sala, não sabe a hora de ir embora, pede janta, pouso e um chá na madrugada.
É traiçoeira porque entra, fica e faz, mas sem avisar. Faz medo, faz dúvida, tece uma longa coberta que só faz gelar os pés.
É engano, é armadilha, é golpe; é do tipo que trabalha com as obviedades percebidas tardes demais.
Idiotamente surpreende porque faz cegar.
E até no vazio das sombras completas, a noite não é nada senão traiçoeira, porque a razão será insuficiente. Será preciso um pouco de loucura para que se consiga compreender toda a perfídia do processo.
Mais loucura ainda para recordar que tudo é tão pequeno e redondo e por isso mesmo algo tão ridículo - que bolinha ridícula! - que, veja só, seguindo reto, haverá outro lado, e ele será dia.