[A Poética das Águas: "A Transição das Águas"]

A trilha e as águas... correm, correm... e, junto à trilha, na imensidão da invernada, imponente, a palmeira de bacuri. O seu talo grosso e escurecido dos anos tem as marcas das folhas perdidas no crescimento. O lodo verde lá no pé das folhas formado pela umidade guardada das chuvas, as folhas bastas e verdinhas, os cachos de cocos se debruçando: a palmeira que é sinal de terra boa! Ninguém a corta, pois desmerece a terra. O bacuri e a trilha; para sempre juntados nas referências da gente! O gado parece que anda em curvas de nível nas encostas das montanhas. Segue sempre as mesmas trilhas estreitas e sinuosas que contornam os bacuris caprichosamente. Eu costumava colocar o cavalo numa dessas trilhas e deixava-o seguir, rédeas soltas, até a sede da fazenda. Antes de chegar à curralama, a trilha passava pela rasura de um córrego que corria num leito rochoso.

A trilha passava próximo de uma cachoeira, a poucos metros do tombar das águas que rebojavam entre as pedras sob uma enorme gameleira que se dobrava, pujante, sobre o riacho. O animal estacava no meio do riachinho para beber. Enquanto ele roncava a barriga saciando a sede, eu olhava as águas se precipitarem. Ah! Quantas vezes eu ficava olhando, pensativo, o detalhe da água que chega para cair! Fixava o meu olhar bem no momento em que a água se curva para descer; ali estava o ponto crítico, o momento da queda. Estonteado, eu me via despencando no tombo das águas e sendo levado pela correnteza.

Aquela transição das águas sempre me impressionava. O riachinho vinha calmo, saía de um brejo de taboas de lodo amarelado e corria mansinho, mansinho. De repente, a queda inapelável! Luta com as rochas que lhe obstruem o caminho, agita no ar, como se fossem compridos chicotes, as raízes escuras que, presas aos troncos das árvores, se esgalham em múltiplas pontas sobre a correnteza.

Depois da descida e de tantas rochas vencidas no embate eterno, lá embaixo, se ouvia o som profundo e contínuo da correnteza principal que sumia, borbulhando, tragada pelo buraco que ela mesma cavou ao longo dos tempos...

Mais adiante, um outro brejo onde às vezes eu ouvia cantar a saracura. Ali, água ficava mansinha novamente, e como se estivesse saindo de um gozo intenso, corria satisfeita, recompondo-se. Contida em novos limites, alisava o dorso e lambia, plácida, os capins do barranco! Nem parecia a mesma água que esbravejara mais acima!

Aquelas águas que lá correram, ainda hoje passam por aqui! Ah! Como eu gostaria de poder cantar a descida daquelas águas! Acho que se pudessem, elas cantariam assim:

Escapando de um lago mais acima,

Preso entre as montanhas da serrania,

Eu vinha, corguinho manso,

Correndo lento por entre as palmas das taboas.

Mas a Terra que me dá a forma e a direção,

Decide que é chegada a hora da súbita transição;

Toma-me, na declividade de seu ventre,

E envolve-me num abraço estreito.

Nessa súbita posse que me arrebata,

Não tenho mais a mansidão da planície;

Divido-me em várias corredeiras que deslizam,

Acariciando a cabeleira de longas raízes escuras

Que as árvores soltam sobre as minhas águas rápidas.

Agito minhas águas, espumo, contorço-me

Entre as rochas que tentam me conter;

E no prazer da descida inevitável,

Lanço espirros d'água para o alto!

E sigo no abraço sôfrego com a Terra;

Ela aperta-me, atrai-me para si,

E nos envolvemos no leito que nela cavei a fundo.

[Excerto do meu livrinho "Araguaris (Narrativas Poéticas)"]