Alegoria - Nix
No dia em que o significado da vida foi roubado, Deméter isolou-se no vácuo deixado em seu peito.
A contingência do mundo fez com que uma eterna incerteza se esparzisse pelo solo da vida e esterilizasse as sementes do devir.
Não obstante, da tristeza de Deméter e das poesias do submundo, eu nasci.
Eu, a forma incerta entre o ser e o não ser. A falta presente em cada expressão da consciência.
A pulsão criativa latente em cada abismo niilista a ser atravessado. Ora, diga-me, como algo se faria a não ser do nada?
Nos invernos da alma eu me fiz do desejo pelo tépido calor, e do culto ao vazio formou-se a vontade e o valor.
Ah, o nada virou um altar cuja adoração testificava que de mim surgiriam todas as formas de ser.
Fiz os deuses questionarem a sua própria existência ao fitarem o abismo em meu âmago.
E tu mortal, no momento em que me olhou, a identidade que te convenceram ter retornou ao pó, e agora dele tu terá que se refazer.
Ora, se eu fosse uma consciência clara, acabada e repleta de formas prontas, como haveriam de acessar a criação?
O vazio é uma massa abrupta donde eu esculpo o meu rosto, e para além dele há o mais tenebroso nada informe.
"Veja, o céu está vazio, ao olhar para ele, há de ver apenas a abstração das nuvens, terá então que imprimi-las de humanidade, pois já não há nada fora de ti, que o justifique em totalidade."
Dentro do meu peito a eternidade se espalha como o vácuo noturno; e ao rasgar a pele das prisões morais, eu sangro em carne viva, com a consciência virada para o desamparo das estrelas imortais.
Nem mesmo os mais perturbados artistas puderam mensurar a minha forma em seus devaneios
Tampouco os gregos ocultistas decifraram a maldição da minha melancolia.
Quando eu morrer me acharão em tudo aquilo que ainda não são, pois apenas quem passa pelo nada é capaz de entender o real sentido de ser.
Quando eu morrer, refaçam a minha memória: reverenciem a pluralidade das existencias, escrevam poesias obscuras como uma forma de oração para Hécate e pintem quadros com o sangue dos nazistas.
- Letícia Sales
Instagram literário: @hecate533