memória

ela é um escarcéu quando escreve. papel e lápis se unem num compasso descontrolado. há faíscas por toda parte, e uma chama solitária surge; a luz reflete o interior brilhante da mulher que escreve. é tão antigo, o ato de escrever, que ela sente o peso do tempo até quando se propõe a redigir algo comum, cotidiano feito uma lista de compras ou um recado para o filho mais novo que sempre se esquece de tudo. ela não se esquece de nada; não por genética, mas por costume. se esquecer nunca foi opção quando, no meio de um metrô lotado às sete da manhã, a ideia pipocava em sua mente e a arrebatava, tão grande força que poderia erguê-la do chão. ela mal tinha espaço ao redor do corpo para puxar o bloquinho de notas que mantinha no bolso da mochila surrada, então lhe restava apelar para a memória. a memória falha, logo ela gastava muita energia colecionando os fragmentos das ideias que a encontram no meio do caminho. escrever também não é uma predisposição genética; dessa vez, muito menos um costume. talvez seja um chamado de alma, algo que a perturba desde que nela as palavras fizeram ninho. é também a palavra que a imprime em si, uma insígnia que é dela e também do mundo. talvez seja uma obrigação moral com a memória. talvez seja seu desejo de fazer do fim um novo início, dessa vez menos duro; aqui, a palavra é guia imprevisível, ainda que conhecedora da vida. e quando o papel está bem na sua frente e o mundo se resume a um lápis pequeno, comido na outra extremidade, a palavra é dela, é ela, nasce nela, morre nela.

Letícia Montes
Enviado por Letícia Montes em 07/07/2022
Reeditado em 07/07/2022
Código do texto: T7554819
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