[Rastros]

[Poema das coisas — por que “o vazio se divide em poemas”...]

Olho para trás — Sigo rastros...

Ou serão os rastros de Minas a me seguir?

Jogado no mundo, desconheço o meu script;

quem ou o quê me daria um fio

para eu não me perder entre as cenas?

Aquela cidade, aquela avenida, aquela casa

abriram-me uma passagem no tempo;

deu-se assim outra singularidade da Natureza —

finalmente, depois de milhões de anos,

era chegada a minha vez de existir.

espicaçando o meu inconformismo de ser,

algumas aparições me povoaram desde então:

o mundo adormecendo de tédio na bruma da chuva fina,

o tloc-ploc de patas de cavalos no ermo da noite,

as alamandas compondo a amarelura musical de uma manhã clara,

o fragor do ferro das enxadas a capinar entre as pedras,

um louco rasgando suas vestes enquanto sobe a avenida,

os canários-da-terra na poeira fina da avenida,

uns pássaros feridos, vários deles presos por uma linha fina,

os gritos cavos daquela mulher já nos braços da morte,

a água fria porejando da bolsa de couro sob a carroçaria de um caminhão,

a cruz no escuro do bosque do Parque ensinando-me a palavra “suicídio”,

o vento no fio de água da solitária torneira da pena-d’água da rua,

o aroma do café recém coado às três horas da tarde,

uma antiga moda de viola coando-se entre as estáticas do rádio,

um elefante de porcelana sobre uma mesa escura,

a buzina foem-foem da charrete do leiteiro,

um cavaleiro tocando seis vacas pela avenida,

os urubus sentindo o vento para decidir o rumo do voo.

Impossível não ver esse desfile,

impossível fugir aos rastros,

impossível desarmar o passado,

impossível tentar compreender

como seria o mundo sem mim,

embora eu saiba que o mundo

passa muito bem sem mim!

No estouro de uma bolha, eu nasci,

portanto, foi uma ironia, uma brincadeira

sem-graça que me trouxe a este mundo.

A loucura maior, o sarcasmo atroz

é saber de insensata certeza, que longe,

bem longe, alguma alteridade minha,

veste a armadura desengonçada do Agora,

e, perdida no tempo, sonhando-me, sonha a cidade...

Réis-coados — para quê, para quê?!

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[Penas do Desterro, 08 de março de 1999]

[Excerto do meu "Caderno 2"]