Secas
Minha querida senhora(inha)
me fala desses sertões contente
nessa cidade vazia de gente,
respira, a noite, solidão a fora,
para essa, minha, senhora, é que volto de repente,
carrego a memoria do sol,
chegando como quem ainda é vivo,
trazendo surpresa e, contente,
abraçando minha genealogia.
essas pessoas todas perdidas,
da vida que aqui findou,
senhores que não me perdoam
por voltar sem alegria,
nessa chão carente de cores,
nessa seca que castiga,
logo eu, filha da terra infértil,
criada em água doce,
banhada por outros rios.
todos iguais a antiga América,
comem e rezam, milagrando sabores.
também eu aqui sangrei, saindo feito doida varrida,
esqueci do vendeiro, do sapateiro da rua e da vizinha,
dos amigos pequenos e do pai,
mas ainda lembro a água gelada das cinco e meia,
das vacas andando sossegadas nas ruas,
do radio de uma casa desconhecida às alturas,
das andanças na magrelinha.
Cá ainda estou viva, eu sei,
sinto o cheiro de tudo agora.
um cigarro que fumei, metade jogado fora
nessas ruas calçadas e feias,
pouco verde ontem e sempre.
e essa gente descontente que ainda me apavora.
com seu deus e suas capelas,
seus cordéis que habitavam minha meninice,
juntado e jogado fora.
o deus daqui é visível em pedaços de madeiras,
aberrações depositadas num quartinho,
fantasmas que afugentam os mortos,
a via crúcis do corpo.
eis-me aqui novamente,
trazendo nenhuma saudade,
dessa opaca cidade, um grito,
lembrança de quando parti.
se aqui ficasse estaria morta, assim como agora,
um riso.