O bom Daemon

Pode o nada surgir do nada, ou melhor, o nada de algo surge? Que seria este? Penso, como poderia eu vim a ser-algo daquilo tudo que não-sou? Digo, como posso definir a mim mesmo como a negativa de tudo aquilo que não sou, cuja a consciência que tenho, ou que ela me tenha, não importa, é produto de um nada por ausência, tudo aquilo que não era e não é para mim? Da mesma forma, penso, como tudo o que pode vim a ser deriva de um não-ser, que por excelência deveria-se de outro não-ser surgir, haja visto, que ela estaria assumindo uma posição de negação da explicação metafísica, isto é, da causa eficiente, mesmo que a predicação em relação a ela seja discutível, por que tudo isto existe?

Há em mim uma espécie de nada daquilo tudo que é antes da existência, não um nada metafísico, ou o da sua ingênua tentativa de negação em absoluto, o niilismo, mas uma espécie de nada que só o é por não ter vocábulo que o melhor a defina, por não ter um termo suficiente, pois em o ter limita-se e ao fazer isto não é. Há em mim uma espécie de vácuo que me dilui, uma consciência deveras que me esmaga. Um ranger de dentes que me exprime no indizível e que na dor mitológica suprime a minha essência misteriosa de não-ser e me lança ao inominável de tudo isto. Sou como o caleidoscópio de quem o interpreta, este mesmo, aquele mesmo que é só seu. Há em mim uma espécie de negação por excelência, um atributo indiscutivelmente inútil de tudo dizer e nada concluir. Sou como os versos de Pessoa que só por ser pessoa é também eu. E que por ser eu é, também, nada. Ah está agora pois a rir de mim, Pessoa, Pessoa nos Campos Elíseos, junto com Dante, Hesíodo, Homero e muitos outros, mas que só por ser tu é Campos Elíseos, pois não haveria de ter outro com igual fome. Ah este tal vazio que não tem nome, este entre meios entre nada e tudo, este este, isso isso, aquele aquele. Construo-me em versos e despedaço-me em tudo. Sou como o não de uma mãe para um filho, ao lançar-lhe um olhar feroz de quem ama e que por o amar, bate e bate. Sou a vida de quem vive em prostíbulos a frequentar almas em corpos e corpos sem alma. Sou como o policial a procurar bandido, que ao procurá-lo procura-se e ao encontrá-lo encontra-se na justiça. Sou como a inocente e pura, sim, purissíma donzela que se entrega em mãos todo o corpo ameno e macio, típico de uma donzela, na mão daquele que o retira da sua posição, sim, da sua não tão amada posição de pura, gentilíssima e amabilíssima donzela. Sou como os versos que outrora sobrepostos ao meus perde-se em mim, assim como nele perdi-me. E ao leitor, chuif ao leitor encolerizante que se exploda, não estou preocupado no que me leem, lia a todos desde a tenra infância, nunca preocupei-me em quem iria porventura ler-me, hei de pôr as mãos ao céu se algum dia, algum dia, alguém chegar a me ler, enquanto isso, leio. Sou como gaivotas a rir por tudo, naquilo tudo que desencontro-me e que por desencontrar-me acho-me nisto mesmo e sorrio. Sou também o cafetão, que tira das meretrizes o seu pão valia, só o mais 1, aquele mesmo que iria lhe garantir o diminuto luxo, digno apenas de tirar dela, momentaneamente, a condição de prostituta e lhe estender a mão do alívio de mais um pão a mesa; talvez nem de luxo isso deveria ser chamado, mas um luto, um luto prorrogado. Mas não se enganem leitores, sou também a prostituta, que não se sente enganada por ser judiada pelo cafetão, não pela sua santidade, mas sim pela sua impossibilidade de diante disto algo sentir. Também diria que sou a síntese das sínteses, ou melhor, a síntese das grandes sínteses, mas nisso tudo perdi-me e por perder-me me avistei no horizonte e nele não tinha propósito, síntese e nem conclusão. Mas por apenas ser eu, seja lá o que isso significa, vi-me a olhar pela janela de um quarto escuro as cantigas de raparigas cantando para as estrelas e o infinito. Vi-me também como o gato preto da bruxa e a bruxa não viu-me. Mas fiz disto tudo aprendizagem, pena que esqueci. E assim vou cantando para o infinito, sem saber o que é o infinito, numa música sem fórmula de compasso, clave, armadura, nota e andamento e hei de publicar tudo isto que ousei tensionar escrever em que digo o contrário só para provar que sou sublime.

Oaj Oluap
Enviado por Oaj Oluap em 01/05/2022
Reeditado em 02/05/2022
Código do texto: T7507358
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