porto alegre
Quando voltei a Porto Alegre encontrei uma rachadura na parede. Escutei um barulho no apartamento do vizinho. Ele é desprezível. Tem uma bandeira do Brasil na sacada. Depois de 2019, comecei a torcer para a seleção da Argentina e do Uruguai. Toquei a campainha. Perguntei se sabia de algo anormal no prédio. Respondeu com uma onomatopéia. Cagou pra mim. Me’rmão. Nesse lugar ninguém não liga pra nada. Próprio deste mundo vago em que vivemos a vida, a tal. Porto Alegre nem estava tão alegre. Olhei a Borges de Medeiros pela janela. Reparei que era tarde, os postes tinham suas luzes acesas. Postes acenam com uma cor âmbar. A rotina da cidade amordaça a revolta. A rachadura perde a importância depois que pulo por cima de uma pessoa dormindo na calçada. Engulo o jejum como uma soda cáustica. As vísceras se mexem no vazio do apartamento. A cidade carrega uma arquitetura concreta. Se não fosse o concreto restaria a realidade. Os buracos do asfalto e calçadas formam o que está fora do lugar. Caminho no espaço. Piso na rua e ela me pisa. Hoje passeei comigo mesmo. Me levei para correr e deixei a ração no prato. Voltei exausto. Queria lamber algumas sobras. Estou sentado no sofá sem dono. Moro sozinho neste apartamento de pé alto. Sou um cão vacinado e castrado. Adoro comer o que se diz não prestar. Presto atenção, mas tudo passa, inclusive acho que já passei por aqui. Às vezes, quando acaba a luz, vou até a rodoviária. Corro pelo viaduto e ninguém para. Posso ser até invisível. Só não faço isso quando chove. Quando chove tudo fica alagado. Prefiro ficar embaixo de uma árvore. Espero um raio cair por aqui, mas é tanto prédio que nenhum me acerta. Até pra morrer a cidade dispensa formalidades.