O nobre - baseado no livro ''Memórias do Subsolo de Fiódor Dostoiévski''
Eu sou um homem excêntrico, pairando a existência longe da minha essência, rastejando. Com a consciência de que passo os dias como quem há de passar só mais um dia nesta prisão, esperando o cárcere a porta para a mim abrir e com o sorriso largo primevo resplandecer. Mas como a o cárcere para mim a porta abrir? Como, se havendo lugar, haveria mais coisa que ele mesmo? Sou posto no finito sem uma justificativa de antemão e passo como que um homem sedento por sangue de vingança diante de tamanha estupidez humana durante todo ele. Pergunto aos céus, aos heróis, aos semideuses, ao rei Sísifo, o mais sagaz dentre os homens e sempre recebo como resposta um curto e singelo não; não, não irei te ajudar, fazes da tua caminhada o que ela somente é, tua. E questiono a Zeus, oh pai, tens Ulisses e deste a ele Penélope, tens Aquiles e a este deste Deidamia, Perseus e a este deste Eurídice e a mim, tão ignóbil mortal nada ofereceste, seria porventura isto verdade? Tão reles quimeras de conceitos a tu se assemelhaste? Oh Zeus autor dos raios e trovões, com tão altiva e voraz voz em minha cabeça, a mim nada ofereceste? Por obséquio deste que vos fala, que teria tanto de pecar o meu falar, como naquilo tudo que definiste a mim e a ti, blasfêmia, ignóbil e insurgente aparentaste? Que há de errado comigo, que há de tão errado, oh céus? Nesta minha ignomínia de homem almejando o céu, sábio em trombeta falsa proclamando a nova vinda. Hermes de chapeu de couro e de pés descalços. Nobre que autoproclama-se e escritor que ninguém ler. Ah eu em minhas sutilezas tão vis, tão vis que por o ser nada é e tão, tão nobres que se apresenta como um alce montado numa nuvem a correr; gesticulo ereto, sento, levanto e em mil palavras tão cortês e mil gestos tão delicados me apresento nobre, ao menos um nobre vil, vil de tão nobre e nobre de tão vil. Não, não há homem tão inteligente quanto eu, todos ao meu redor a asno se assemelham e eu de tão culto, homem de consciência, a todos eles faço o milagre de ensinar. Elegante, ao menos, para mim em um gesto, ou um relance em te observar de tão perto, tu, oh altiva voz triunfante! Ah ignóbio, ignóbio, ignóbio, mil vezes ignóbio, tens, por ventura, algo contra mim? O que minha pessoa a ti causaste, ou seria, por acaso, por não ter causado? Ah ignóbio, ignóbio, como um dia julguei um dia alcançar tão sublimes letras? Como? Como um dia essa barbarice julguei pensar, eu um homem tão nobre, tão, tão, tão nobre.