O jardim suicida
A natureza carrega a morte em sua genealogia primordial, então, lentamente definha, ao passo que espraia-se descomedida pelo ar da vida.
No exato momento em que se vive;
também se morre. Sei disso como sei que o fogo consome as formas enquanto inflama em vitalidade.
Num solo insólito a rosa recolhe suas pétalas - os aromas ferem os sentidos e a delicadeza da existência espeta o âmago.
Viver é um incômodo - ser podada pela limitação dos outros e pela minha própria; ser colhida pela superfície e arrancada de mim sem o meu consentimento.
Os olhos espremem o sumo da alma até que eu escorra, líquida e azeda.
Ainda sim, nada disso é apenas fruto da minha imaginação.
Não padeço de desequilíbrios químicos, sou a raiz que absorve a realidade.
Mantenho todos os nutrientes embaixo dos meus pensamentos, e todas as substâncias se espalham por mim em harmonia.
Todavia os pássaros do meu jardim não praticam o voo sincronizado - perdem-se desprotegidos e aéreos.
Sou vasta - em mim as cores do mundo se matizam e dilatam os sentidos. No meu jardim tudo é vivo e fértil, mas algo ainda o faz se volver em si mesmo.
Como erva daninha, uma torrente mescla-se junto ao meu cultivo, transformando-me em um ser cheio de amplas contradições e nutrientes de feia grandiosidade.
Sufoco por dentro e as raízes do meu silêncio arranham a parte mais interna que há em mim.
Não posso mostrar-me por total ao mundo, pois nele não hei de caber, nem mesmo em meu seio cabe tudo o que sou.
Ah, mas enquanto o mundo me enxerga tantas vezes muda, tantas vezes estéril, tapada e misteriosa, milhares de florestas escuras crescem para dentro e povoam o meu ser com uma natureza arraigada no solo da alma.
Já a dor, essa praga que outrora tentou se alimentar de mim, hoje é o meu mais belo nutriente, pois ajuda-me a crescer por entre os bosques ocultos das palavras.
Não sou amplamente triste, sou viva e carrego as asperezas da desarmonia.
Digo-lhe que a essência dos seres que tu julgas conhecer, ocultamente cresce para além da tua percepção; e tu mesmo cresce para além de si.
- Letícia Sales
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