A FACE DAS HORAS
Dei às palavras face,
e lágrimas sulcaram-na
como gotas de água escorrendo
rumo a destinos imponderáveis de vidraça
exposta ao tempo.
Mas dei-lhes também o riso largo
das alegrias genuínas, em todos os detalhes
com que nasceram das minhas escolhas.
Entreguei-me a elas e dei-lhes o mundo,
dei-lhes amigos e histórias próprias,
fantasias e picos de sonhos ímpares.
Também juntos,
mergulhámos em abismos profanos
perdidos nos ecos de tempestades
quase insuspeitadas.
Caminhámos juntos por toda uma vida,
somando momentos, escrevendo momentos e
registando, como se pudéssemos guardá-lo,
o teor efémero e único dos instantes.
Mas aos poucos chegou a temida hora
de deixá-las entregues a si mesmas, para que
contem as histórias que são só minhas, não nossas.
E nesta despedida, nesta separação de rumos,
há já a saudade antecipada dos caminhos
que juntos fizemos. Do rio correndo,
incessante e prenhe da imensidão
onde tudo se deleitava.
Que agora cresçam, livres, se pudermos.
E que agora eu nasça, solto, se souber como.