O Coração
Todos os dias as sementes crescem, e o eco de nossas palavras em um passado, um que talvez nossas mentes tenham feito adormecer, faz-se ouvir pelos tempos de nossas mudanças, na intensidade que o apraz. E cada sopro de consciência que levanta o véu e nos desperta, traz o extremo de nossas vidas, e tudo se converge para o seu centro. Nada que adormece se faz morto, e a cada respiração a verdade bate por dentro, sobrepõe-se a qualquer razão. Todos os dias uma luz que é só nossa nos conta uma verdade, um futuro, sorrindo, como em brincadeira, que lá na frente vai emergir e se fazer nossa própria existência. Que não nos esqueçamos que essa é mesmo a face da maior verdade, rindo-se, vestida de palhaça, contornando em danças distraídas e tropeçantes, a natureza primária e única de todas as coisas...
Que eu possa ter a coragem de ser uma fracassada no mundo que lhes pertence.
E o coração teme o quê? Se a dúvida existe lá fora, e aqui dentro tudo é luz...
É medo de si, eu com medo de mim. Vai coração, cale a razão, a razão que não é sua, fale a vida e corre para o seu lugar, só você sabe onde sorri sem prisão. Olhe, coração meu, olhe só um segundo para o seu reflexo, abandona, coração, só uma vez o chão, o passo firme, perde-se, coração, para que se encontre. E deixa, deixa desmoronar, deixa gritar tudo a sua volta, volta-se a si e silencie o que não é seu. Ah, meu coração, a aventura de viver lhe espera com fé de que chega, se não conhece mais as amarras do seu passado, solte-se do futuro que não lhe pertence, deite aqui no agora e se espalhe sem pedir licença, sem pedir desculpas. Porque, meu coração, das poesias do mundo já viu os montes de pedras, já colheu os prantos, já se dilacerou em alegria infinita, não corte a sua alma procurando segurança, não se faça vigilante do puro cuidado, para você a única solução é voar e conhecer as noites e os dias da sua existência.
Não se assombre, meu coração, com a lembrança do que já lhe habitou, a única promessa é a vida, que seja de uma alegria que só vem depois de sangrar, ou de uma tristeza que advém da pura beleza, a única promessa é de vida, dor e intensidade.
Vai, coração, ilumina-se em si mesmo e dê-lhe a chance de chorar sem o amanhã, e sentir a plenitude de tudo o que é seu. Vai, coração, que a razão é um brinquedo, não se assemelha a você, não conversa com suas virtudes, não ganha nunca da sua certeza. Vai, que o mundo quando quer dizer a verdade, escolhe você como ouvido, e é a sua voz que elege para lhe pronunciar. Coração, não adianta se cansar, terá de acordar novamente todos os dias, portanto, coração, apenas ande, e caia, e tropece, e levante...não, coração, não espere nenhuma ponte que lhe apazigue as águas, as marés são suas, e nelas estará só, sustenta-se em si mesmo e segura-se na sua própria agitação, mesmo que olhe em volta e peça socorro, é tudo seu, tudo é a você que volta, tome o remo e segue, mesmo que pare, nunca haverá redenção, porque só pode seguir. Seu paraíso é aqui mesmo, coração, todo canto é sua casa quando se reconhece em si. Vai, nem que tenha de ser um estranho pro mundo, não espere de ninguém o que só pode chegar a você pela sua própria natureza. Vive para sempre, para sempre jovem, o véu já foi levantado para você, não há culpa, não há juízo final, só existência, agora não pode voltar, o caminho que deixou para trás não mais se faz, não poderia, meu coração, reconhecê-lo.
Vai, coração, que já conhece todos os contras, já viu a face de tudo que lhe nega a felicidade, vai e ri disso tudo, que eu lhe acompanho.
É preciso só começar, cuidado só para atentar para a paixão, esmero só para não deixar o fogo se apagar, lembrar-se de que os olhos que permanecem abertos nem sempre provêm a garantia de pura visão, mas o coração que se põe a conversar com as aberturas do universo, alcança a claridade do caminho.
O tamanho do voo não se medirá por quão longe se estende os braços de ponta a ponta, mas pelo arco de beleza que faz por envolvidos todos os mundos que o alçaram.
A ponte que se deita e as águas que sugerem o som e a força de novas vidas, voltam-se para o quando que não se delimita, para o sempre que não se perpetua, para o nunca que desapega das impossibilidades, não para o tempo que é invenção de nossas fraquezas e de nossas fugas.
Que de todas as ordens que sei criadas pelo homem, possam uma a uma ser pó em lembrança, e as asas tortas e incertas de todas as buscas verdadeiras envolvam as noites e dias de todos os nossos viveres.