A Vida A Partir Da Morte
Não hei de falar aqui de forma impessoal, quando na vida a partir da morte posto-me tão pessoalmente, não só em participar, como principalmente em personificá-la, ainda vezes muitas a criá-la. É preciso que eu morra, de tempos em tempos, como a beleza vem clamar por ser vista quando ao encontro concreto da feiura, como as impressões de valor se sobressaltam ao toque do desvalor, como as noites inevitavelmente só o são assim chamadas porque não são dias. E morro eu, de muitas intensidades, ainda também em muitas intensidades, minhas mortes eram mais espaçadas e me tomavam pálidas lacunas do ser, bem como as vidas que lhes ocupavam os lugares em mim posteriormente, mas minha morte evoluiu e me visita com mais frequência, ainda que fique bem à vontade em meus espaços, ainda que sente-se e coloque-se em conversas mil, permanece por menos tempo, sua duração não me ama como me ama sua força. Vão-se embora minhas mortes, todas em seus ápices, deixam-me nada além de vida e largamente em mistério fazem-se a nutrir-me do que no dia de suas noites jaz, como se falta nenhuma de vida pudesse me fazer lembrar menos de que a vida há. Eu morro de tempos em tempos e é preciso que eu morra, a estar longe das fontes já não mais fecundas, como fazem os pássaros em voos continentais, minha morte vive tanto que se esvai em si e morre contínua e novamente, espalha-se cansada ao encontro do meu corrente sangue e alcança sinal vital; morro como todo o resto faço: até a última gota de si, minha morte morre sempre em vida.
Das cores eu prefiro as quentes, das cores os tons eu prefiro os de fogo, do fogo eu prefiro o que cria. Das águas eu prefiro o mar, das palavras eu tanto as prefiro a todas as coisas que as prefiro de todas as formas, que as saúdo em tons de fogo e tons de mar, mas as prefiro como as inteligentes, as ácidas, as cortantes, as de verdade. Dos amores prefiro os tranquilos, no que do amor prefiro o que faz, não o que toma. Da verdade prefiro a liberdade que nela jaz, seja cá, seja acolá, em mim, nos meus diversos cantos, minha verdade, que dos cantos prefere os saltados, os enfáticos, os que se fazem ouvir por todos os cantos. Dos vinhos prefiro os tintos, dos discursos prefiro os assumidamente falhos, das opiniões prefiro as refeitas, das ideias prefiro as revistas e as revisitadas. Do sol e da lua, prefiro o sol. Da mata e da montanha, prefiro a mata. Das religiões não as prefiro, nem as profiro, nem as protejo ou projeto; já das crenças prefiro as marginais, já da marginalidade prefiro a graça de me fazer nela andar. Dos esmaltes prefiro os vermelhos, das frutas prefiro as vermelhas, dos cabelos prefiro os vermelhos, das roupas prefiro as vermelhas, e com flores, e das flores prefiro as imensas...da rosa, a cor-de-rosa, do girassol, a essência. Dos impulsos prefiro os de criação, da raiva prefiro a força, das forças prefiro a de amar. Dos lírios prefiro o cheiro, da lua prefiro a cor, do sol prefiro a vida, da margarida prefiro a simplicidade, do mistério prefiro as perguntas. Dos cheiros prefiro os de madeira e terra molhada, dos rostos prefiro os marcados, dos animais prefiro os felinos, das aves prefiro a águia, das promessas prefiro as de vida. Das teorias prefiro as práticas. Das lutas prefiro não as ditas, mas as lutadas. Dos ventos prefiro os de após a chuva, das chuvas prefiro as torrenciais. Das perguntas prefiro aquelas que movem, da humanidade prefiro aqueles que movem, dos movimentos prefiro aqueles que humanizam, dos humanos prefiro aqueles que se mexem. Dos governos prefiro estar no de mim. Das noites prefiro as de verão, dos dias e das tardes prefiro as de verão, dos climas prefiro os tropicais, das danças prefiro as latinas, da geografia prefiro a política. Das bandas prefiro Beatles, das letras prefiro Neruda, da alma prefiro Gibran, da loucura prefiro Lennon, das artes prefiro a unificação, das pessoas prefiro a igualdade, das uniões prefiro as de força. Dos programas prefiro os de humor, das comidas prefiro as brasileiras. Do nada prefiro a possibilidades, das possibilidades prefiro a de felicidade, da felicidade prefiro a inusitada, dos sorrisos prefiro os idiotas, da simplicidade prefiro o amor. Da amizade prefiro o amor, dos pais e dos avós prefiro o amor, e os presentes, e os chocolates. Dos chocolates prefiro o amargo. Dos presentes prefiro os feitos à mão. Das companhias prefiro as que incomodam quem não anda comigo. Dos jeitos prefiro o sarcasmo, dos sarcasmos prefiro Wilde, das horas prefiro as vividas. Dos feitos prefiro os que se espalham, das derrotas prefiro as lutadas. Da razão prefiro só o que nela deve ser pensado, da emoção prefiro só o que nela deve ser sentido. Dos momentos prefiro os de encontro e os de reencontro, das estradas prefiro as de curvas, do tempo prefiro o que me faz incessante.