Diálogo no consultório do taxidermista

-De fato, é um ótimo trabalho de taxidermia.

-Uma obra-prima?

-Sem dúvidas uma obra-prima.

-E você tirou tudo?

-Tudo o que era disfuncional.

-Ah! então agora funciona perfeitamente?

-Não. Parou de funcionar por completo, tornou-se inútil.

-O que!? Como assim?

-Como assim o quê?

-Como assim não funciona mais? Isso não faz sentido.

-Não percebe? Eram seus órgãos cancerígenos que lhe davam sentido, era a decrepitude que o movia. Tiramos os seus demônios, as suas angústias, as suas dependências e agora ele não tem mais por quê mover um músculo. Restaram apenas os órgãos funcionais, a máquina anal, a máquina fálica, a olfativa, a tátil...

-E a máquina poética!?

-Retiramos.

-Por quê?

-Porque era disfuncional.

-Ora, mas escrevia!

-Sim, e escrevia muito bem, mas em quais situações? No âmago do desespero, à beira do precipício, à margem dos próprios sentimentos, ele não precisa disso.

-Precisa! Precisa, precisa, precisa, precisa porra! Ele precisa caralho, coloca essa merda de volta agora.

-Então quer que ele volte a sofrer?

-Óbvio que não.

-Então não tem nada que eu possa fazer. É isso ou nada.

-"Esse" nada?

-Sim, esse nada que está diante de você, esse corpúsculo sem graça, sem tesão, essa máquina apoética, esse homem comum, sem crueldade.

-...

-E então, o que vai ser?

-Eu não sei. Não quero que sofra, mas se o sofrimento movia suas composições maquínicas então não tem porquê deixá-lo assim.

-Não era o sofrimento que o movia.

-Não? Então o que?

-Era o que ele fazia com o sofrimento. Ele transformava em poesia, em arte, em desenho, em pintura, em dança, em diálogos, em vontade de foder, em orgias e bacanais, ele nunca se deixou abater pela sua vida sem sentido, pelas suas angústias, sempre fez algo disso. Era um digníssimo coveiro de si: sabia como cavar os seus órgãos, sabia como expôr suas entranhas. De seu mal-estar febril ele fazia surgir flores, é assim que ele funciona. Aprendeu a transformar a tristeza em um afeto revolucionário. Era um poeta, oras, esses caras funcionam de um jeito muito estranho mesmo, contra-intuitivo... não é que gostem de sofrer ou coisa assim, não. Os poetas não gostam de sofrer, apenas sabem fazer isso muito bem.

-Entendo... até que faz sentido. Então... já que tiramos a sua angústia, isso é, a sua força motriz...

-Ele não tem mais porque escrever, nada mais o move. Sendo bem sincero, quem escreve quando tá feliz? A alegria é o melhor dos afetos, disso não temos dúvida, mas poéticamente é sem graça demais, ninguém pode viver sempre sorrindo, sempre saltitando, é preciso sofrer um pouco. É preciso de crueldade. É impossível viver a vida sem isso: sem sadismo, sem violência, sem crueldade, sem poesia... Esse homem aqui na frente, ele foi o maior dos perversos, o maior dos poetas.

-...

-E então, o que vai ser?

-Estou decidido.

-Está?

-Estou. Devolvam-lhe tudo.

-Tudo?

-Isso, tudo.

-Toda a angústia? Todo o sofrimento?

-Toda a angústia, todo o sofrimento, todas as noites mal-dormidas, as suas inseguranças, os seus traumas, a sua dependência emocional, os seus vícios e sobretudo: a sua maldade. Eu estava errado, esse filho da puta tem que aprender a se salvar sozinho, tem que saber se virar, não cabe a nós querermos salvá-lo, fazer qualquer coisa, tipo... ele é um poeta, tá ligado? Tem que saber o que fazer com esse monte de merda que retiramos.

-É verdade.

-Qual o nome dele mesmo?

-Deixa eu ver aqui... achei. Raul Brasil.

-Nomezinho legal.

-Sim, sim.

-E quanto vai custar essa cirurgia?

-Caro pra caralho.