O progresso que desumaniza (série)

Capitulo 1: Banco do Brasil

O passado.

Os passos apressados… Pelos corredores do prédio, correndo, entrando nos elevadores, apertando os botões luminosos, que me conduzem a outros andares… Brincando de nave espacial, viagem no tempo, e tantas outras invenções, oriundas da imaginação sem limites de um ser em plena infância. Momentos e sensações, que não se limitam apenas a corridas, subidas e descidas. Continuam pela lanchonete do terceiro andar, onde degusto salgados, sanduíches, refrigerantes, e quanto mais guloseimas meu (jovem) estômago consegue suportar…

Encerrado o lanche, é hora de “trabalhar” na máquina de datilografia, que se encontra em local improvisado, ao lado da mesa de minha mãe, funcionária do banco. Enquanto ela trabalha, atendendo os clientes, fico de cabeça baixa, a bater os dedos com força e rapidez, registrando letras, números e símbolos… Deixando-me levar pelos primeiros (e sedutores) passos no mundo subjetivo da escrita.

Entre um teclar e outro, eu me permito levantar, mesmo que levemente a cabeça, e a prestar a atenção… No movimento das pessoas, desde os clientes, passando para os mesários, os caixas, funcionários da limpeza… Noto, em grande parte deles, uma amizade, um respeito, um clima agradável de sorrisos e descontração, um calor humano exala das janelas, ao mesmo tempo em que recebe um ventinho bom de fora, que todos agradecem e que os impulsiona, a trabalhar com mais satisfação e prazer.

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Os dias atuais.

Entro no Banco do Brasil… Ao invés de pessoas, atendendo com um “bom dia” e uma “boa tarde”, encontro máquinas, as chamadas “Caixa – Rápido”. Podem até serem eficientes, as tais máquinas, contudo são apenas máquinas, ríspidas, sem sensibilidade, no qual inserimos cartões e digitamos códigos… A lanchonete nem deve existir mais… Pois afinal, máquinas não precisam beber ou comer… Os funcionários, assim como a velha companheira de datilografia, foram substituídos por avançados computadores, que repito, podem até serem mais eficientes (e rápidos), porém não esboçam qualquer simpatia ou charme…

No primeiro andar, atualmente o meu último acesso, avisto ainda alguns funcionários, trabalhando nos caixas e mesas… Mas tudo é diferente. O ar-condicionado reproduz a frieza que existe no ambiente dos dias atuais… Faz até com que algumas pessoas que se encontram nas filas, se tornem mais impacientes e tensas…

Às vezes, mais vale um barulho que incomode, do que um silêncio que angustie…

Sobraram apenas poucas pessoas, a operar as máquinas, apertando um botão e outro, sérias, e quase sempre com um olhar estressado, mais parecendo as máquinas, que elas próprias, operam. Não há mais sorrisos, pois não há mais crianças correndo e brincando… Minha mãe não se encontra mais aqui… Aposentou-se há alguns anos. Ela não se encaixaria mais neste “novo Banco”… Com sua alegria de viver, ela traduzia exatamente o que era a agência de Parnaíba há apenas alguns anos…

O calor humano não existe mais. A inocência se foi. Existe apenas um ambiente fechado, repleto de trancas e alarmes, dispositivos implantados para que haja mais segurança… Mas que torna o Banco do Brasil, assim como diversos outros bancos, cada vez mais distante das pessoas que dele dependem.

O avanço tecnológico aliado ao crime e a violência, consistem em alguns dos principais motores que tornam possível o “progresso”, sempre atrelado ao capitalismo, e cada vez mais, independente de “humanidade”. Esta série surge para tratar justamente destes “progressos” e suas consequências, principalmente no que condiz à questão do fator desumanizador deste avanço ou progresso, que muita gente nem nota… A não ser, quando este se faz, real e tarde.

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Capitulo 2: Cemitério da Igualdade

O passado.

O relógio indica mais do que nove da noite… Invadindo o Cemitério da Igualdade, de passo em passo, e bem devagar, eu e mais alguns amigos, procuramos fantasmas, em plena sexta feira, de lua cheia… O silêncio é grande, e só não é completo, devido às fortes batidas do coração, que parece até que vai arrebentar o tórax e rasgar o peito de cada um destes moleques traquinas que aqui se encontram…

Sem que os demais suspeitem, o último dos jovens, que adentra o cemitério, carrega uma pedra na mão, secretamente recolhida por ele, antes que todos entrassem…

Um olhar em meio ao frio e a escuridão, meio que nos deixa apreensivos, ao mesmo tempo em que a tal pedra oculta é arremessada em direção aos túmulos. Ao atingir a mármore (pertencente a mais um que passou “desta para melhor”), a pedra provoca um pequeno barulho, bem pequeno mesmo, mas o suficiente para amedrontar estes jovens aventureiros de mentes férteis e, agora, almas congeladas…

Segundos depois, a correria é grande, na busca de escapar dali, e sem olhar para trás, logo estamos… A correr mais do que bicicletas aceleradas, percorrendo a Rua Ademar Neves (nosso território de jogos e brincadeiras), e sorrindo, ao ver que a esquina de casa está próxima, e é onde estaremos, completamente a salvo…

Minutos depois, lá estamos. No nosso “quartel general”, a esquina de casa, já de fôlego recuperado e coração relaxado… A conversar na esquina, sobre cemitérios e sustos, narrando histórias arrepiantes de fantasmas e assombrações, coisas estranhas e bizarras, lendas e folclores, verdades e mentiras…

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Os dias atuais.

Retorno da casa de um amigo, no controle de minha Bizz. É noite, e trafegando pela Avenida Capitão Claro (sentido Avenida São Sebastião), faço a curva pelo retorno da pracinha, adentrando a rua, onde na esquerda se localiza o Cemitério da Igualdade.

Esboço um sorriso, ao contemplar o cemitério, que tanto estimulou minha imaginação, como também aguçou os meus mais profundos medos infantis e pré-adolescentes… Porém, antes que eu alcance a Ademar Neves, avisto ainda na calçada, quase que no fim do quarteirão, um grupo de caras, com atitude um tanto estranha. E noto, para meu espanto, algo que mais parece um revólver, na mão de um deles.

Bom, se é um revolver ou não, acho que nunca saberei, pois disparo a toda velocidade, mais depressa que trem- bala, percorrendo o caminho até a esquina de minha velha ex-casa, sem olhar pra trás, e não deixando de perceber o deserto que prevalece neste dias de hoje…

Que bom era o tempo em que procurávamos “mortos”, ao invés de hoje, que nem ao menos encontramos uma “viva alma”, para contar a história!

A rua, mais parece o cemitério do qual fujo, e que sempre fugi! Isto me faz perceber, o quanto, atualmente, as pessoas se reservam em suas casas, entregando-se aos computadores ou a tantas outras invenções que a modernidade fez surgir… Encasteladas, resguardadas em seus próprios domínios, sem nem ao menos terem contato com sua vizinhança ou amigos… O medo que antes existia apenas nas lendas, assombrações e no cemitério da Igualdade, ou seja, aquele medo do sobrenatural foi lentamente sendo substituído por outro tipo de medo, o medo da violência, que o progresso e o crescimento constante (e desordenado) da cidade trouxeram, e que tomou conta não apenas de certos locais ou mentes férteis… Espalhou-se por toda a região, desde o cemitério, percorrendo toda a extensão da rua até alcançar a esquina, o bairro e todos os lugares… Assim como a todas as pessoas.

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Capitulo 3: Florindo de Castro

O passado

Sentado na bike, com as mãos no guidon… As pernas tremendo, e o pensamento apenas na queda, como também nos arranhões que possivelmente levarei, desta que é a primeira vez que pedalarei minha bicicleta, sem o uso das famosas e cômodas “rodinhas”…

Enquanto isto, de pé e segurando a bicicleta para que eu não caia, encontra-se o meu irmão adotivo, Claudio, que mais velho do que eu, cerca de cinco anos, é forte o suficiente para me segurar, até que a bicicleta ganhe uma velocidade e eu, teoricamente, consiga continuar guiando, agora sem o seu auxilio.

O cenário: A rua onde moro, Florindo de Castro. O percurso: Desde a esquina que dá acesso a Avenida Capitão Claro até o fim do quarteirão, onde se localiza minha residência.

Apesar do medo, eu confio no meu irmão, pois afinal, ele tem substituído o meu ausente pai em bastante coisa, desde que eu tinha quatro anos e meus pais se separaram, Claudio é a figura masculina que tenho como exemplo, além de um grande amigo e parceiro de aventuras reais e inventadas.

Observo a rua, as pedras do calçamento, bem encaixadas e acomodadas. Olho para os lados, visualizando as casas dos vizinhos e amigos. Volto minha atenção para frente, avistando desta maneira toda a extensão da pequena e calorosa Florindo de Castro… É quando tomo um fôlego, crio coragem e aviso ao meu irmão que estou pronto!

A bicicleta então é empurrada, com rapidez, e por uns segundos, até que o Claudio solta a mão…

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Os dias atuais

Passeio com meu cachorro, como de costume todas as noites. De mp4 no bolso e fones nos ouvidos, escutando Air Supply, enquanto caminho por alguns quarteirões da Chagas Rodrigues (avenida) sentido Farmácia Rodoviária.

Durante o caminho, percebo uma grande quantidade de motos e carros, a trafegar impacientes e acelerados, forçando os pedestres a um verdadeiro malabarismo, no momento de atravessar de um lado ao outro. A faixa de pedestres até existe, porém dificilmente é respeitada pelos motorizados que ditam o ritmo e as leis.

Enquanto contorno o quarteirão pela Avenida Capitão Claro e de encontro a Florindo de Castro, reflito sobre estes sombrios dias e estas ainda mais sombrias noites. De como a cidade cresceu, mas pouco aprendeu. Progrediu, mas pouco evoluiu. E o retrato disto é a Florindo de Castro, tomada quase que completamente por comércios, escolas, clínicas e escritórios, o que até a torna bastante movimentada durante o dia, (claro que, com o ônus de muitos acidentes), mas que se torna deserto, frio e escuro, quando da noite se veste. Ausente de pessoas nas portas de casa, de meninos e meninas aprendendo a andar de bicicleta ou até jogando bola…

O progresso trouxe o asfalto, que por sua vez, abriu brecha para o aumento e avanço das motos, dos carros e até de transportes maiores, pilotados em muitas das vezes, por motoristas irresponsáveis e arrogantes (desumanos), o que fez com que, gradativamente ao decorrer dos anos, as pessoas fossem abandonando as portas de casa, deixando ruas como a Florindo de Castro, durante a noite, apenas para os nostálgicos, os marginais, os bêbados e as malditas rasga- mortalhas.

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Capitulo 4: Beira do Rio

O passado

As ruas são os nossos sentimentos… E o carro, ah, o carro é a armadura que reveste nossos tolos corações, a mil batidas entusiasmadas e eufóricas! Juntos, eu e mais quatro amigos de infância (e em plena adolescência), percorremos a cidade de Parnaíba, pela noite, a procura de lugares e situações que possam alimentar os nossos mais jovens desejos: de sorrir e de se divertir “aos montes”.

Depois de trafegar pelas praças, avenidas e bairros, num clássico Monza, e ao som do rock brasileiro e do gringo, com nossas mentes leves, cantando – para todos e para o vento – canções de lealdade, mexendo com os casais de namorados, com os ciclistas e tantos outros, alcançamos a Beira do Rio – Point da garotada – lugar onde a “noitada” começa, para em seguida, e dependendo de cada tribo, despencar a procura: da boate, da festa de rock, do barzinho, da praia.

E eis que, ainda na Beira- Rio (e já ao final dela, a parte menos iluminada), nós avistamos alguns indivíduos, em atitude um tanto suspeita, protegidos pela ausência de lâmpadas e postes de luz, tentando disfarçar e esconder um cigarro, porém, sem sucesso, pois num ambiente tão escuro como esse, a brasa fica difícil de não ser notada.

Um dos meus amigos, o mais “louco”, resolve colocar a cabeça para fora e gritar obscenidades… Foi o suficiente para que os ocultos indivíduos, talvez por pensarem que pudesse se tratar da policia, logo se amedrontem, rebolando o cigarro em direção ao rio…

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Os dias atuais

Dirijo em direção a escola onde ensino. É noite, e carrego na alma um profundo sentimento de pesar… Há apenas dois dias, eu perdi um aluno: Mais uma vitima do envolvimento com drogas. Porém, antes que eu possa chegar a Unidade Escolar, e por ainda ter alguns minutos antes que o turno inicie, eu resolvo seguir em frente e alcançar a “velha” Beira Rio.

Como é inicio de noite (e de semana), a juventude que geralmente frequenta a Beira Rio, não se encontra, presencio apenas as ruínas do que um dia foi o Clube Igara. Avisto uma AABB quase que abandonada, como também alguns bares “das antigas” e outros que nem existiam na década de 90.

Lembro dos meus amigos, e de como (hoje) cada um vive a sua própria vida, em sua própria cidade, em seu próprio ritmo, sua própria frequência, em seu próprio progresso: intelectual, profissional e pessoal. Um sentimento nostálgico percorre o meu ser, pensando em como seria bom entrar novamente naquele Monza, conversar sobre os medos e os sonhos, vontades e verdades… E me pego, levemente sorrindo, quando recordo o dia em que assustamos, “sem querer, querendo”, os tais indivíduos ocultos…

Ah quem dera, se as drogas ainda fossem coisa de um fim de semana, de pequenos grupos, de uma simples brasa na escuridão… Não, hoje não é mais assim. As drogas já se multiplicaram, se diversificaram, invadindo lares (de ricos e pobres), roubando vidas (de crianças e adolescentes), transformando adultos (em marginais e traficantes)… Que acabam provocando Medo, ao invés de antes, quando eles tinham Medo…

É quando fico a observar, da beira do rio, tentando entender, e com o punho cerrado, por que as coisas só pioram?

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Capitulo Final: Porta de casa

O passado.

Os balões, a música, a correria danada, sem freio, nem sermão…

A casa, inundada de amor, amizade e tantos outros sentimentos que ajudam a preencher, guiar e a estruturar um ser humano, que mal aprendeu a cantar as canções românticas da rádio, que acha que o mundo dele será apenas de alegria e compreensão, de momentos enfeitados e coloridos, como os desenhos animados de He-man, Caverna do Dragão e Thundercats, que passam na Xuxa, todos os dias, como também quantos filmes da sessão da tarde, ele possa assistir, deitado no sofá e frequentemente despertado pela sua avó, mãe, vomãe!

Os amigos, a cada hora, chegando com presentes, que variam de brinquedos a roupas, mas é claro, que a preferência é dos brinquedos, que o ajudam na imaginação, de tantos contos e histórias, a se perder pelo tempo, que para ele nem existe.

Da porta de casa, arrumado e ansioso, ele, eu, recebo os amigos que se atrasaram… Sempre com um sorriso no rosto.

Até que uma voz conhecida me chama para a sala.

Uma pose para a foto, pouco antes dos parabéns, e a minha vomãe, ao mesmo tempo em que me abraça, com todo o carinho e ternura de sempre, aponta em direção do flash… Mal houve tempo de pensar!

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Os dias atuais.

De frente para a minha antiga casa, repleta de recordações, tento conter as lágrimas ao lembrar, do tanto que mudou e do tanto que eu perdi…

Observo a porta de casa, do lado de fora, pois não é mais a minha casa, e sim de um desconhecido qualquer, que nem ao menos pagou adequadamente por ela…

Quem eu amava… Quem eu tanto amava, minha vomãe, já não mora mais nesta casa, nem nesse mundo…

Esse mundo cada vez mais desumano, que parece me devorar a cada noite, em que caminho pelos destroços de acidentes, puxadas de tapete, relatos de homicídios, construções inacabadas e tantos sonhos perdidos… Tento me manter forte, para que a insensibilidade não tome conta da minha alma, me agarrando forte no que me resta de família e amigos, esposa e filhas (meus grandes amores), apoiando-me também na minha escrita, e no meu trabalho, com meus alunos, que também são grandes amigos…

E desta forma eu vou vivendo, em meio ao progresso que desumaniza, tentando lutar, mesmo sabendo que sou muito pouco, a falar para uma pequena parcela, que muitas vezes nem lê, ou talvez nem mais sinta…

Toda uma angustia que aqui, eu revelo.

Claucio Ciarlini (2012)

Claucio Ciarlini
Enviado por Claucio Ciarlini em 11/03/2022
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