O céu de Kiev
Os emissários do caos rasgam o céu de Kiev, iluminando as noites da capital abandonada com clarões terríveis. Eles são arremetidos de curta distância e com precisão perfeita.
Os mísseis mortais são lançados, à galope, relampejando pelos ares. Causam um grande estampido, que se propaga mais facilmente pelos largos corredores de avenidas desertas, esboroando os alvos.
Colossais colunas de fumaça incensam a cidade ucraniana de uma atmosfera intoxicante. E por fim, o que resta é rastro de destruição, entulho e escombros.
O teatro tétrico é televisionado em tempo real pelo mundo afora, aos olhos descrentes e corações aflitos. Outros, porém, apáticos, pela irrealidade das imagens, as quais se confundem com filmes de guerra e jogos eletrônicos.
Somos todos, entretanto, espectadores de tragédias reais, o êxodo em massa de mulheres e crianças, a resistência brava e valorosa de homens de carne e osso, a ruína de prédios de concreto.
O mundo observa boquiaberto o nascimento de uma ordem multipolar, mas a reconfiguração da segurança planetária por novos players globais ainda está por ser decidida, na mesa de negociações, entre líderes mundiais e os seus respectivos aparatos diplomáticos.
Enquanto isso, o Urso das estepes desfere em seus vizinhos golpes duros com suas patas pesadas, num evidente exercício de demonstração de força, alavancando assim poderes nefastos de dissuasão e de barganha.
Tudo se dá simultaneamente, em ritmo frenético. Os mercenários do Czar retiram-se da África e aportam em Kiev, em caça do presidente cercado, mas artificialmente empoderado pelo apoio ocidental. Nas fronteiras, as rodadas de negociação por um cessar-fogo imediato tardam a vingar. E as sanções alcançam o efeito midiático esperado de que algo está sendo feito, embora pouco eficaz e efetivo, no mesmo momento em que tudo desmorona. As armas enviadas pelos aliados europeus não chegarão a tempo, e a infraestrutura ucraniana é pouco a pouco minada e desestabilizada.
O tabuleiro do xadrez da geopolítica mundial é a Ucrânia, mas os enxadristas em combate são, de um lado, a OTAN, composta pela Europa Ocidental e encabeçada pelos EUA, e de outro, a Rússia, recebendo endosso sutil e discreto de outro ator, por agora invisível, uma vez que não é a hora dele agir, mas apenas observar e absorver, sem gestos temerários que atrapalhem um planejamento de longuíssimo prazo.
Pressurosos, nós, alienados dos centros de decisão, assistimos o desenrolar de uma blitzkrieg russa que se estende indefinidamente, num suplício sem fim dos civis ucranianos, os únicos inocentes num jogo de interesses mais vasto e mais profundo.
O cerco a Kiev avança noite após noite, aos que sobraram, residentes resistentes, em noites insones e assombrosas, ao que diria o profeta do Oriente Antigo:
“Como está sentada solitária aquela cidade, antes tão populosa! Tornou-se como viúva...”