[Adágio ao Poente]

Passa o tempo... passa o tempo...

A florada dos ipês nem na memória existe mais,

As chuvas já suavizaram as lembranças do inverno,

Mas o pote de mágoas ainda não se encheu.

Quase um ano de sofrimentos...

Ainda estão vivos os espinhos na carne,

Ainda ardem as chamas dos ódios inúteis,

E embora esquecido, o gume das escolhas

Agora torna pesada a máscara dos erros!

Passa o tempo... passa o tempo...

As dores extensas, sem fim, se contraem,

Viram pontos escuros no tecido da vida,

Pontos ligados, um ao outro, e o outro a um,

Tudo nos conformes do absurdo da existência;

[Esta dor... é desse ano ou daquele ano?].

Passa o tempo... passa o tempo...

Chega, enfim, o tempo do grande salto,

Grandes águas entenebrecem a imaginação,

O medo aguça a sensação de eternidade,

E a mente engendra a fútil oceanidade do ser...

Alguém irá demolir a casa dos sonhos de alguém,

Talvez uma árvore fique esquecida a um canto,

Mas ninguém se lembrará de que, à sua sombra,

Alguém sonhou a casa ora em escombros.

Passa o tempo... passa o tempo...

Desfazem-se lá no espaço os fumos

Dos orgulhos das portentosas criações dos homens;

Mas dos séculos passados ainda ressoa

O lamento definitivo de um rei cego:

Melhor fora nem ter nascido!

[Penas do Desterro, 26 de novembro de 2006]