AO AMANHÃ DE QUEM EU FUI
Quando o amanhã chegar e eu estiver distante do hoje em que agora vivo o que verei do que aqui não vejo? Será que perdoarei o assossego fatigado com o qual perambulo vagabundeante pelas franjas e frestas da vida, descansado das horas insonhadas na ventura de quem espera talvez a noite derradeira? Será que perdoarei o menino que me condenou a este homem presente que por um triz passou pelos seus infantis desejos? Ou será que detestarei a lucidez futura com que me noto os minutos não colhidos que desperdicei e desperdiço pela ausência dos meus olhos que ainda virão? Esquecerei do que já não lembro e deste meu rosto enrugado de adiamentos? O que persistirá de mim no amanhã que vem depois das brevidades do hoje, e que no porvir incerto encontrará quem sabe minguadas palavras que meus ouvidos surdos jamais escutarão? Carrego interrogações do que serei na gravidez buliçosa do tempo corrente em cujo ventre germina e gesta o Joaquim vindouro: aquele que não percebo sequer no mínimo gesto.
Fala homem, tenta, o que vês? Evoca-me, já que sou teu passado que ainda não acabou. Estarei condenado a viver o futuro de olhos virados pra trás? Ou estarei esquecido pela memória do mundo com a garganta cortada pela navalha dos arrependimentos? Será que ficarei escrevendo esboços de cartas para mim outrora como se fosse um final de domingo se despedindo do sábado? Por que sofrer em lustros venturos o que posso evitar agora? Por que não me dizes homem velho que degraus devo subir ou descer? Será que és um ancião malvado que se apraz em me ver de lá os erros de cá? Ou queres me poupar da falibilidade inevitável de ser somente o que sou e nada mais? És realmente capaz de me traíres com minhas tristezas de hoje? Afinal, não sou eu quem te fiz? Ou é exatamente por isso que me silencias: por vingança? Perdoe-me Joaquim porvindouro por este teu Joaquim pretérito. Todavia, és igualmente culpado ao não me avisares das consequências de minhas escolhas e da desistência de minhas devidas renúncias.
Se sabes mais amanhã do que sei agora é porque meus sonhos não são foram feitos de lembranças futuras. Minha memória devia ser construída de posteridades, pois só assim seria feliz antes da senilidade e do adeus. Resta pensar-me octogenário e dialogar comigo de frente pra trás. Projetar-me ali velho e acabado, e escutar meus suspiros sussurrantes de queixumes e ressentimentos. Assim meus vermelhos seriam menos dramáticos e meus beges mais tonais e brilhosos. Meu arco-íris não seguiria as cores que ora sigo, mas o fluxo desordenado e anárquico fiel de mim, onde nenhum amarelo seria seguido de verde, nem o verde de qualquer azul. Meus vermelhos seriam violetas e minhas violetas seriam anis.
Se meu espelho fosse feito do mesmo minério de uma bola de cristal, ver-me-ia adivinhante o rosto que um dia terei. E te modificaria querida face; e te daria melhor feição e te diminuiria os vincos em teu cenho, e te daria mais cabelos e menos preocupações. Arrumar-te-ia todo pra me amares e nós dois juntos, então, mergulharíamos abraçados na noite derradeira e sem fim. Porém não posso, velho Joaquim, fazer-me diferente de mim, pois assim tu não existirias como serás e eu não seria como quem hoje sou. Estamos, ambos, predestinados a este cruel destino: estar no amanhã de quem eu fui.
Se sou hoje um pouco mais da metade do que serei e nem sequer metade do que sonhei ser, amanhã me restará o futuro que nunca terei.
Fernando Pessoa dizia que só depois de amanhã é que pensaria no depois de amanhã. Se ruminasse mais o meu destino não chegaria hoje com as interrogações que ora trago. Mais tarde conversarei comigo como uma subsistência sonhadora. Sim, isto que o tenho sido: um conjunto desordenado de sonhos que nunca viram ou irão ver a luz do sol. Olho pro futuro com a angustiosa melancolia de quem amanhã olha o seu passado. Eis em mim o meu porquê não tenho nenhuma saudade de quem serei. Lá deverei a chorar o que hoje sou sem querer ser.
Percorro zanzando pelos minutos do dia deslizando na distância cada vez mais diminuta entre meus dois Joaquins. Visto pelo apartado do tempo lá me pareço remoto. Contudo a ausência entre nós vai se preenchendo de proximidades. O que direi a mim sobre o que deveria ter feito e não fiz? Por dentro procuro o amanhã e não o encontro, embora saiba que lá chegando deparar-me-ei com minhas tantas desculpas e outros vários receios. Se não me fizer o que eu sou não foi somente por descuido ou esquecimento, foi por estes assustamentos, esquivas e adiamentos. Sei que tu me aguardas com esperança ou raiva. Sei que levarei a ti muito mais desculpas do que acertos, pois sou tão errôneo hoje quanto ontem fui de mim agora.
Subtraindo-me ao desgaste do tempo e ao esquecimento da memória vou-me desdobrando um pouco de mim a cada dia. Entrarei no amanhã tão incerto quanto incerto já fui do menino. Em minhas ambiguidades algo escapa e algo fica. Serei posterior a mim parte espelho e parte esfinge. Serei continuamente aquele que foi e o que não foi parido. Serei como foi Álvaro de Campos (F. Pessoa): serei o que não nasceu para isso, aquele que só tinha qualidades. E quando lá chegar não existirei totalmente apenas porque não me deixei ser. Entre o que me aborrece e o que sonho restará eu, meramente eu e nada mais...
Joaquim Cesário de Mello