Amava ler e não tinha a ver com os livros
"Trancada no quarto, de madrugada.
Lendo um, dois, três, dez livros.
Perdendo amigos. Lia aquelas sagas de três ou quatro volumes.
Chorando, com as pernas vermelhas, doloridas e o corpo marcados de cinto, de vara, de chinelo. Tinha toda a coleção de Shakespeare.
O cabelo duro, o coração partido, as mentiras, os roubos, a inocência perdida. Os romances juvenis, a literatura estrangeira.
O mundo da leitura a ensinava a observar de fora do corpo, pra dentro do peito.
Os amores, os amigos, as irmãs, a mãe e o pai. Tinha um livro pra cada um.
Vovô e vovó tinham os mais especiais, os mais raros e de edições limitadas. De capa dura e algumas marcas de traças.
Itens essenciais na bolsa. Garrafa de água, lápis de olho, os títulos: Poemas de Walt Whitman, O velho e o Mar, A luz Através da Janela. Mensagens de paz e sabedoria, Gandhi. E nada mais.
Amava ler, não por diversão, não pra passar o tempo. Não por ser culta e inteligente.
Pra criar um mundo onde havia motivos para ser feliz, pegando de cada obra lida, uma parte para sua auto construção .
Se fez, se criou, deu forma a resiliência e paciência. Se abraçou, se ouviu, riu de si mesma e viu que aquilo era bom.
Seus pilares fortificados deram vida a tudo que existia nos livros, trazendo paz pra dentro do seu coração, amor pra sua alma.
Esperança para o seu futuro.
Agradecia a Clarice Lispector por suas reflexões solitárias e rígidas dando forças num dia frágil.
A Machado de Assis por sua cordialidade e humildade, via beleza no sofrer, mas não se permitia dominar por ele.
A Cecília Meireles e Ruth Rocha por não deixar a criança morrer mesmo depois de velha.
Aos John's todos, pelos conselhos, só está pronto a amar quem tem o maior amor por si mesmo.
A infinita dedicatória devida de cada autor, a cada biblioteca, a cada emprestado que não foi nem voltou, a cada achado nos sebos, no lixo, a cada presente no dia do aniversário pelo vovô."