Deus salve o reino
Incrível, a bruma nunca nos abandona. Ela nos persegue, nos envolve e nos põe medo. Sinto-me impotente, porém, há muito conformado.
Sou uma cabeça calva e coroada, num corpo pesado e débil de raciocínio.
Herdei o trono dos entediados, um diadema cravejado de diamantes e um reino desde sempre espoliado.
Oh! Sou o grande monarca dos tolos, dos desocupados e dos viciados no poder, por isso não acredito em trabalho e desencorajo a honestidade.
Pobres súditos esfarrapados! Chego mesmo a lamentar sua má-sorte: se ao menos tivessem a sabedoria de um verdadeiro dirigente para os guiar? Certamente não morreriam de fome, estes camponeses que são só pele e osso e que frequentemente encontram a foice da morte antes dos trinta.
No passado el-rei gostava de se servir das boas cortesãs e mais de uma vez mandara decapitar um colérico marido traído. Hoje, no entanto, sinto-me velho demais para tais estrepolias.
Entre as damas que pululavam na corte, Leonor foi a única que não quis ceder aos meus caprichos e apetites. Em nome de um sentimentalismo reles, a bela pagou essa afronta com a própria vida.
Sou um rei sem majestade. Não creio na verdade. Ora, o mundo todo é uma miragem.
Meu reino não tem alegria nem flores. Bem, talvez uma ou outra a enfeitar os cabelos de uma camponesa.
Meu reino ainda está a esperar por um verdadeiro soberano.
Sou seu governante no leito mortuário. Dissipador e pecador, comprei o perdão da Igreja. O rei dos tolos, dos desocupados e dos viciados no poder.
“Aqui jaz nosso rei”, apontavam-me a multidão. Oh! Entre a turba a fome era tanta que logo meu corpo seria consumido num horrendo ritual antropofágico.
Deus nos salve do rei e da rainha, cheios de privilégios.
Deus salve o Brasil da ganância dos corruptos, que é outra funesta pandemia.
Ó, meu Senhor, tira-nos da ignorância que é a escuridão e livra-nos do mal.