A maldição dos olhos
Num vale esquecido por Deus se instalara uma comunidade de mulheres, fugitivas dos impérios dos homens. E não foi por acaso que foi num vale, foi tudo estrategicamente pensado. É que as mulheres, apesar de privadas de educação, não foram privadas de inteligência. Com maridos guerreiros que tinham, uma coisa aprendiam decerto das poucas conversas que escutavam atrás das porta fechadas. Era que o homem nunca abandonava a vantagem da terra alta. E sabiam outra coisa, ainda mais importante: se o homem sobe os mais altos picos montanhosos para estar mais próximo dos seus deuses, também o fará para estar perto da sua mulher. Afinal, as únicas entidades perante as quais o homem alguma vez se ajoelhara fora Deus, a mulher e aquele que o derrotara na guerra, sendo que os três enfardam a simbologia da morte.
As mulheres, o sexo belo por Natureza, não fizeram mais do seu vale do que espelhar nele aquilo que nelas foi vertido. Toda a comunidade estava repleta de bordados de cores vivas, de curvas harmoniosas que lembravam a fluidez melódica da vida livre, contrariamente às linhas retas da arquitetura masculina, simbólica da ordem harmónica. A mulher é caótica porque assim nasceu. Aliás, os gregos designavam de "khaos" o abismo, que ao fim ao cabo é um vale. A bela cidade estava embalsamada de melodias de flautas, quando descobriram que soprar não servia apenas para arrefecer o caldo; de notas de lira, quando deram por si que os dedos eram úteis para além do tecer; de cânticos belos, quando abriram o vocabulário a mais do que apenas "sim, senhor", "não, senhor".
Contudo surge um único problema, que era o da preservação da cidade, para a qual, na infelicidade das mulheres, a Natureza decidiu que eram necessários homens. Mas como fazer para que homens não corrompam a beleza da cidade e que sirvam apenas para reproduzi-la? E onde arranjar esses homens? É que do vale não há saída, ou por ser demasiado íngreme para trepar, ou porque quem o abandona vira as costas àquilo que é belo, e tal ultraje fere qualquer convenção do Matriarcado.
As mulheres pensaram usar o que tinham à disposição para atrair os homens àquilo que viria a ser apenas a escravatura do falo, isto é, os seus corpos e as suas músicas. Tal como as musas, de facto, só que não era para uma ilha no meio dos mares, mas era um vale no meio dos mundos. Os homens tombavam na cidade como os cordeiros em cima da mesa no dia de Páscoa, só que alegres. Era talvez a única vez que o homem procurava o paraíso olhando para baixo. Em reinos distantes, os contos da tal cidade no submundo fizeram homens cavarem buracos nos seus próprios quintais a ver se encontravam tais belezas.
Claro, a rainha era perspicaz e declarou que o número de homens não poderia ultrapassar o número de mulheres, limitando-os a um terço da população, coletivizando-lhes as sementes para várias mulheres quando necessário. E uma mulher estava impossibilitada de engravidar mais depois de ter uma rapariga. Já bastava de chorar por homens.
Acontece que a rainha engravidou de uma menina, como já o trigo o tinha previsto. Mas Deus, furioso com a alteração da hierarquia natural das coisas, castigou a rainha dando-lhe uma filha cega. Typhlosis foi o nome que herdara, que representava a sua condição de cegueira.
Quando a rainha adoece e a princesa toma o trono, depois de anos privada daquilo que era o pilar da cidade, a Beleza, busca vingança sobre aqueles que com nada contribuíram para o seu infortúnio e declara que se retire os olhos a todos os habitantes do vale. Subverte os valores da cidade, clamando que os conceitos de belo e feio são as origens do mal no mundo, conceitos que causam divisão e opressão, conceitos limítrofes da liberdade humana. Mais outorga que as mulheres são obrigadas a parir em quartos totalmente escuros, para que os recém-nascidos nasçam sem ver nada mais do que aquilo que a rainha vira toda a sua vida e permanecerem vendados até atingirem a idade suficiente para sobreviverem à retirada pouco cirúrgica dos olhos. Os cânticos são proibidos porque não se quer a entrada de videntes para o vale. A cidade degrada-se porque preservar o belo já não é prioridade. Aliás, o belo já não existe.
E assim atravessa a tradição no tempo durante três gerações. Três gerações nas quais as alterações na cidade não se viam, pelo menos entre os cidadãos, mas os homens de cima viram transformar-se aquilo que era o Jardim de Éden na Terra em algo mais parecido com um poço de lama depois de um dia chuvoso. As cores morreram todas, a música pereceu em zumbidos moribundos. O vale padecia de vida. Mas a vida continuava segundo mandava a tradição.
O pretendente a engravidar a rainha era um jovem de dezassete anos, de cabelo louro como a cevada, cuja cor dos olhos não vos sei dizer. A cerimónia de contratação é interrompida pela entrada inesperada da irmã mais jovem da coroa, que solta algumas palavras dispersas pelo salão. Ora, o tom dócil e caloroso, o sabor doce das palavras, o som dos passos de donzela no granito da corte, soavam a paixão para o jovem que se aproxima dela e começa a tocar-lhe as mãos, sente-lhe os dedos um por um, sobe-lhe pelos braços macios acima, aprecia os seus ombros fracos e o seu pescoço fino e passa as mãos pela sua cara. Sussurra-lhe "uau, tão bela".
E a neta de Typhlosis manda cortar-lhe as mãos.