EU SOMOS TANTOS
Às vezes nem sequer estou escrevendo. Apenas descanso os olhos sobre o papel, abstratamente, olhando sem realmente as ver, as esparsas palavras eventualmente já escritas que logo foram esquecidas.
Releio-as como novidade, procuro honestamente entender-lhes não apenas os significados, mas principalmente os significados que coloquei nelas, as intenções que nelas quis aparentes, as escolhas que me levaram a escolhê-las.
E depois de algum tempo gasto neste entrosamento, dá-se um certo desfocar de olhos, um leve pairar por cima do momento em que as leio, e continuo percebendo que estão lá, que o momento é esse momento, tenho-as presentes na consciência como sendo minhas, mas percebo que já não fazem parte da forma como agora vejo esse momento. Se fosse escrevê-las agora, mesmo dentro desse mesmo momento, já seriam outras, nem melhores nem piores, apenas outras.
Isso leva-me à ponderação que num mesmo momento, numa dada interseção de tempo e lugar, temos vários momentos psicológicos em que vários outros eus, que também somos, revisitam em instantes, e se manifestam. E as suas vozes juntas se desalinham, não soam em uníssono mesmo sendo nossas, e o momento subitamente se enriquece, e nós com ele, com esta perceção de que cresce a cada vez que é revisitado. E no meu momento, gritam instantes diferentes. E os detalhes abrem-se em bocas dizendo palavras que logo não me convencem, mesmo sendo minhas ainda.
E depois há uma espécie de cansaço, feito de perdas absurdas, de curiosidades que jamais serão satisfeitas, de trocas impossíveis, que me levam a escolher a solidão. E nela confortado, em silêncio, sabendo que tudo foi explicado em momentos anteriores, me aninho no conforto de tudo quanto não digo, de tudo quanto não tenho que fazer, e me abraço pelos joelhos, agachado, fetal, e fico não sendo, não sendo, assim, desconstruído, esparso, etéreo, mais livre do que se pode ser.
É então que todo o regresso se torna doloroso. E toda a dor também é um regresso. E quantas vezes já nem tenho para onde ir…