Prosa e Vida

Estou perdido. Nenhum abraço me toca, nenhum beijo me embriaga, nenhum amigo me conforta.

Estou perdido. Mas de quê? De quem? De onde?

Estou vivo. Ainda vivo. Isso, por si só, já deveria bastar, não?! Não. Não basta. Há uma ausência em mim que não se preenche com nada. Padeço de uma sede insaciável, tenho fome de não sei quê. Tenho tudo ao mesmo que nada tenho.

Olho para o falso azul de nuvens sonolentas, e minha alma - que não creio - se embrulha nas entranhas palpitantes dos desejos. Uma angústia serena engole meus pensamentos. Todo eu sou feito de interrogações que se anulam em silêncios abissais. Sim, estou perdido. Mas nem por isso sou menos ou mais infeliz que qualquer pessoa no mundo. Creio até que sou feliz. Creio. Não sei se sou. Iludo-me. E quem neste mundo esquecido não é iludido! Talvez a condição da felicidade seja a ilusão ou a loucura. "O coração, se pensasse, pararia" - Fernando Pessoa.

Desejaria chorar. Que tédio - nem isso posso. Nada posso. Minha emoções estão bloqueadas.

Que será isso? Que doença é esta que mata sem matar-me? Que dor é esta que me perturba sem doer? Será por desventura saudade? Mas de quê? De quem?...

Se investigo, repentinamente surge-me imagens, ou antes, impressões de um tempo antigo onde ainda acreditava na "verdade". Ah, meus sonhos juvenis! Minhas doces ilusões! De vós restou apenas o vazio, um buraco no lugar de Deus...

Cada dia que passa a ausência aprofunda, um silêncio mortal, semelhante o mudismo da morte. Estou emudecendo. Falar tem sido um incômodo, a não ser quando bebo, aí eu não falo, eu canto, choro, transbordo, desespero, enlouqueço. Parece que estou morrendo. Que irônico. É claro que estou morrendo. E quem não está? Mas estou morrendo por dentro, morrendo antes de morrer. Quando penso nisso vejo que não é tão trágico assim. Quando a morte chegar eu já não estarei mais aqui, nem saberei que morri. O que é a morte para quem já está morto? Não perderei nada. Se há alguma vantagem em tal destino creio que seja esta: morrer sem nem sequer ter o remorso de ter vivido.

Isso quase chega a ser libertador, mas não liberta. Ainda não morri. Existe alguns apegos efêmeros boiando como farrapos sobre a superfície do meu ser. Por exemplo, o apego a beleza, ou melhor, ao que eu concebo belo. Sou apaixonado por tudo que é belo. Sinto-me bem próximo de coisas belas. Como não me apodero das coisas não me canso de contemplar. Só à distância consigo apreciar. Meus amores são todos platônicos.

Também não me canso de compreender. Quanto mais compreendo mais tenho vontade de compreender. Só não sei bem o que eu compreendo. É uma abstração absurda. Já não busco nada fora de mim, o que não significa que eu busque "dentro". O que eu poderia buscar dentro de mim senão ossos, nervos, moléculas etc.? Busco compreender como penso. Não busco a verdade do pensamento, é mais uma desconstrução para compreender como chegamos ao atual ser humano. E confesso, venho tendo avanços.

Esses dias mesmo compreendi que estamos condicionados pela busca da realização, pelo anseio de completude. Compreendi que tempo, em sentido psicológico, é pensamento. O "ontem, hoje e amanhã" desdobramentos do pensamento. O tempo parou pra mim, não mais passado, presente e futuro. É um ciclo da alma, uma coisa leva a outra. Uma insanidade para dizer a verdade. E nesse processo circular a realização, a completude só pode ser conquistada no "amanhã", que, ironicamente - pasmem - ontem era o futuro que é hoje. Uma bela armadilha do pensamento. Sinceramente, só não compreendo ainda do que temos medo, do que queremos fugir. Talvez seja o medo inconsciente, primordial, da morte, a morte que, de maneira imagética, progetamos ao futuro. Não é da morte que temos medo, é da sua ideia. Mas, por outro lado, foi esse medo que criou a nossa boa e velha vida de guerra e paz. Aliás, qual a causa da guerra senão o conflito daqueles interesses que visam a segurança, a estabilidade frente a um mundo que desmorona constantemente. E o que é a paz senão um produto da guerra, uma consequência da falsa ilusão de segurança? Convenhamos, é um belo jogo, mas está fadado ao fracasso.

Relendo tudo que escrevi posso ver o personagem que me sou: sou aquele que, cansado da vida prática dos homens, busca uma nova maneira de viver, não apenas em seu aspecto exterior, e sim, na maneira de pensar e sentir. Não tenho pretensões de mudar o mundo, quero mudar a mim mesmo. Cansei dessas lutas diárias sem sentido. A compensação é inferior ao esforço desprendido, não dá mais pra continuar me iludindo.

Será que apenas eu sinto-me assim? Deve haver outros por aí que, herdeiros do esgotamento civilizacional, abandonaram o modo de vida tradicional e moderno e se entregaram à busca nômade pelos desertos da alma.

Esta ausência que me preenche de saudade, esta solidão abissal talvez tenha alguma significado, ou melhor, talvez eu tenha de criar um significado. Já não começo a criar? Não sei. É a prosa que vai dizer.

Fiódor
Enviado por Fiódor em 09/11/2021
Reeditado em 13/07/2023
Código do texto: T7381781
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