...E O CHÃO E A PESSOA ESTRAÇALHADA.
... E O CHÃO E A PESSOA ESTRAÇALHADA.
Seis e meia e o que acontece é que meu braço foi tocado e devo abrir os olhos para não fechar e não parar o corpo porque eu uma vez chamei a vida e agora ela me chama em forma de água na cara e depois o espelho com meu reflexo vestido de jeans e tênis branco sujo que confundo com meus próprios pés a andar no chão através de passos que me levam a lugares quaisquer da minha casa e também do meu planeta e isso tudo forma uma imagem e um som na minha cabeça viva por apalpar oxigênios e gases nobres estalantes que me transportam à rua das pessoas e às pessoas da rua e aos transportes coletivos e o desconforto de estar lá entre desconhecidos a roçar bundas e a cheirar cheiros ruins e ter de lutar para descer e atravessar a rua e engolir grosseria gratuita de gente completamente tomada de revolta e de repente eu até entendo essa revolta como agora eu aqui revoltado e automático subindo a avenida praguejando aos prédios e arqueado aos tédios e esquecido momentâneo da beleza das imagens e dos sons das pessoas e dos improvisos e dos instantes em que se enxerga claramente que a vida é nossa mente e nosso pensamento e este não é contínuo como aquelas funções matemáticas e sim uma sequência de impulsos elétricos que nos fazem até certo ponto inconstantes e sempre pulsantes subindo as avenidas como eu do lado direito de quem sobe sempre andando e sempre não parando de jeito nenhum por mais de dez segundos com o pensamento pensando mil impressões por segundo e com os poros sentindo mil fluidos por segundo e com a boca provando mil hálitos por segundo e com a garganta engolindo mil frustrações por segundo e os olhos vendo mil imagens por segundo o mesmo segundo que o ouvido ouve mil sons e nessa rotina e sequência de uma vida quase igual a um ano ou um dia de um segundo a gente passa entre as ditas pessoas nossas irmãs apoiadas com o chão nos pés igual a nós e igual a mim então o destino me obriga a abrir mão de alguns instantes de minha vida para presenciar uma imagem e um som diferentes na subida violenta e musical e automática e poética avenida hoje tão igual a tudo e ainda mais agora tão igual a sempre e com seu ar com pó e com seu chão sujo e as pessoas sempre iguais e o lixo esparramado e...
num piscar,
a chocante imagem,
o baque do ruído,
como do alto do prédio
um pacote caído,
arrebentado e aberto,
violado pelo chão duro,
duro como as pessoas
e a maioria das situações.
Escolher a própria queda,
eleger a própria hora
e o proposital fim...
E eu e meus instantes marcantes,
e agora eu e minha culpa
por existir e não poder
ter feito nada, nada...
sequer um gesto final...
e agora eu e os meus olhos
e os meus ouvidos,
perplexos,
presenciando tudo...
Mas meio dia e meia e o que acontece é que meu ônibus vem vindo e eu agora começo a correr desenfreadamente pela subida da avenida mais e mais e cada vez mais rápido porque aqueles malditos instantes me atrasaram no meu circuito mas mesmo assim consigo embarcar junto com outros corpos apertados e...
dentro do transporte coletivo
da rotina,
entre rostos curiosos,
agora sou um estúpido
chorando pela poesia
fria e cruel da vida.
Escrito em 08/02/1986, no lado direito da subida da Av. Angélica, em São Paulo.