Nicotina
A cortina de fumaça era densa feito
a névoa de uma madrugada fúnebre;
e Tatiana estava em seu lugar:
sentia-se em casa, mesmo diante
de tanto desapego emocional.
Abaixo da nuca, uma Hello Kitty tatuada:
símbolo restante dos tempos em que
ainda enxergava as cores.
No antebraço, a insígnia desgastada da
fé cristã que perdera havia anos.
Três drinks depois, ela aceitou o convite.
Meia dúzia de palavras promíscuas e nem
uma sílaba romântica, foi o suficiente.
À meia luz, Tatiana se despiu
com a naturalidade de quem poderia estar
diante de um cônjuge desinteressado.
No rádio, uma canção a transportou
ao passado; cifras poéticas que
um dia soaram verdadeiras.
Deitada na cama, fitou a arte do teto
grafitado pelas nuvens de nicotina,
e logo sentiu a língua cinza do parceiro
cortar seu peito dormente.
Do mais, nenhum outro acontecimento
alterou a normalidade dos seus sentidos,
nem mesmo a notícia de um desastre de
grandes proporções que interrompeu
a programação musical.
Ao amanhecer, a insônia persistia, e a chuva
era apenas um artifício que, por ora, regava
as flores mortas do jardim.