Bolinha, a cachorrinha

Mais um dia de aula chegava ao fim, o quarto ano também. Aquele percurso era conhecido, já o fazia desde o início das aulas, aquela rua de barro era um ótimo atalho para cortar caminho e não passar pela avenida em que o fluxo de veículos era mais intenso.

Eu já era crescida o suficiente para não mais irromper em lágrimas no caso de meus pais atrasarem-se um pouco para me buscar no portão, mas não tinha permissão para realizar aquele percurso sozinha, e eu lutava sobremaneira pela causa, com queixas contundentes e manifestações ardentes por "liberdade".

Minha irmã, no alto dos seus seis anos, tendo-me como heroína, reforçava o coro, entretanto, os adultos eram bastante inflexíveis e não havia emenda que revogasse aquele decreto.

Naquela quarta-feira de clima ameno voltava eu para casa quando um filhotinho cor de caramelo seguiu-me. Não era a primeira vez que esse fato curioso ocorria, duas semanas antes eu já tinha visto aquele simpático animalzinho e ele caminhava atrás, porém naquele dia rendi-me aos encantos dele.

Peguei o cachorrinho no colo e convenci minha mãe a levá-lo para casa, ou melhor, levá-la. Era uma cachorrinha e recebeu o provisório nome de Bolinha.

Ainda era filhote, tinha dentinhos de leite e cabia direitinho no colo. Pelagem curta, olhos vivazes, amável e brincalhona, a companheira ideal para uma garota também cheia de energia. Todavia, meus pais preocuparam-se, Bolinha poderia ter outra família e essas pessoas estarem muito entristecidas pelo sumiço do filhote. A fase da manha ficou no passado, no entanto, ainda assim era muito difícil abrir mão daquela nova e querida amiga caso as suspeitas dos meus progenitores estivessem corretas.

Por três dias, dividida entre curtir a minha nova cachorrinha e considerar a ideia de ela já ter outra menina especial para amar, vivi. Na noite de sexta-feira, papai levou Bolinha até a rua de barro onde a encontramos, havia muitas casas pelas imediações e não era incomum que cães se perdessem. Se ela já tinha um lar, para ele deveria regressar.

Buscando me compensar com um agrado não tão frequente, mas que certamente serviria de consolo: papai trouxe uma caixa de bombons sortidos da Lacta. Os chocolates eram ótimos, sem sombra de dúvida, contudo, mesmo que aquela cachorrinha tivesse permanecido tão poucos dias ao meu lado, o apego foi inevitável, mas era preciso seguir em frente e assim o fiz.

Passei por aquela rua outras vezes e não encontrei Bolinha, procurava não pensar muito nela para não sentir o coração apertar, entretanto, numa abafada e chuvosa manhã de dezembro, época de férias escolares, de dormir até um pouquinho mais tarde, meu irmão e eu fomos à panificadora e uma vira-lata caramelo estabanada, de patas compridas e muito faceira, seguiu-nos. Poderia ser simples coincidência, interesse pelo pão, mas ao fazer contato visual com o animal, a emoção: era Bolinha.

Verdadeiros amigos sempre se reconhecem pelo brilho do olhar, li ou ouvi falar disso em algum lugar. No alto de minhas dez primaveras eu não tinha essa consciência, mas a reação exultante do reconhecimento foi inquestionável. Minha Bolinha estava de volta.

Aquela amável cachorrinha não tinha uma menina para amar, quer dizer, não mais porque passou todo aquele tempo longe de mim, todavia, naquele instante em que dobrou a esquina junto conosco e correu para dentro do portão como se nunca tivesse partido, foi difícil dizer não.

Bolinha era cachorra de rua, nunca soube quem eram seus pais, quantos irmãos tinha, nada. Por muitas noites dormiu ao relento, à mercê de pessoas cruéis, sentindo fome, sede, frio, a dor da indiferença. Caminhava em busca de encontrar um pouquinho de amor porque dentro de si era o sentimento predominante o qual gostaria de dividir com todos.

Foram tempos felizes, de muitas brincadeiras, travessuras e amor incondicional. Bolinha era uma amiga fora de sério, o anjinho travesso de quatro patas que crescia a olhos vistos e abanando o rabinho num ritmo frenético esbanjava amor para quem quisesse recebê-lo. Fanfarrona, comuns eram suas fugas quando o portão se abria, gostava de passear por aí, quero crer.

Fevereiro acenou. Faltavam poucos dias para o final das férias, as expectativas de minha parte eram grandes, afinal de contas, ingressar no quinto ano era um ritual permeado de mitos e também orgulho, batalhei muito para chegar até ali, mal via a hora de usar meus cadernos do Garfield e estudar na mesma escola que o meu irmão, mas antes disso, um triste fato partiu meu coração. Era um daqueles abafados sábados de verão, meu pai saiu de carro para fazer algo que nem lembro mais e nesse entremeio de abrir e fechar o portão, Bolinha disparou feito um foguete pela rua e ninguém conseguiu alcançá-la. Ele dirigiu até o terminal de ônibus e procurou por ela, sem sucesso.

Da primeira vez que Bolinha foi embora, não havia nada que eu pudesse fazer para mantê-la por perto porque era preciso compreender que se a cachorrinha perdeu-se de casa, a melhor postura naquela situação era devolvê-la à família. Da segunda, a total desolação: empolgada por um passeio mais longo, minha grande amiga se perdeu pelas ruas do bairro, para nunca mais.

Os brinquedos por mim tão desejados hoje estariam velhos e quem sabe eu até me recordasse com apreço da sensação maravilhosa de ganhar aquele lindo trailer da Barbie que eu via nos comerciais, no entanto, ser escolhida por um animal me foi tão marcante. Ainda hoje, tantos anos depois, penso em Bolinha, que logo naquele dia das crianças sem grandes novidades, o presente que a vida me deu possuía um preço inestimável.

Nunca mais nossos caminhos se cruzaram após aquela disparada estabanada de Bolinha, cada qual seguiu seu rumo, porém o que vivemos juntas sempre permanecerá vivo em meu coração. Amei e fui amada. Hoje gostaria de fechar o dia homenageando essa grande amiga de quatro patas que fez parte da minha infância, daqueles tempos já passados, entretanto, dos amigos verdadeiros jamais nos esquecemos.

- que você tenha encontrado uma menina que te amasse tanto quanto te amei

Marisol Luz (Mary)
Enviado por Marisol Luz (Mary) em 13/10/2021
Reeditado em 14/10/2021
Código do texto: T7362403
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