Ricardo Reis

Cumpre a lei, seja vil ou vil tu sejas.

Pouco pode o homem contra a externa vida.

Deixa haver a injustiça.

Não odeies nem creias.

Não tens mais reino do que a própria mente.

Essa, em que és dono, grato o Fado e os deuses,

Governa, até à fronteira,

Onde mora a vontade.

Aí, ao menos, só por inimigos

Os grandes deuses e o Destino ostentas.

Não há a dupla derrota

Da derrota e vileza.

Assim penso, e esta mórbida justiça

Com que queremos intervir nas coisas,

Expilo, como um servo

Infiel da mente.

Se nem de mim posso ser dono, como

Quero ser dono ou lei do que acontece

Onde me a mente e corpo

Não são mais do que coisas?

Basta-me que me baste, e o resto mova-se

Na órbita prevista, em que até os deuses

Giram, sóis centros servos

De um movimento imenso.

Ricardo Reis - Heterônimo de Fernando Pessoa

***

Sim, Mestre, o que sucede apenas nos acontece. Acima dos deuses está o Acontecimento, o Destino inexorável de nos havermos aqui, o impulso vital que nos move o movimento.

Para além do texto nada nos pertence, nestes símbolos vaidosos de nos sermos imaginações verbais preenchemos a vida que não é nossa.

Falar é uma bela forma de nos enganarmos, assim passo meus dias, Mestre, como tu passastes mergulhado em ilusões poéticas.

Na ampla mente está o mundo, somos nela o que dela não nos pertence, vida e morte do que somos.

Apreendo, Mestre, suas palavras como um sonho - fixa a mente nos acontecimentos neles nos dissolvemos.

Quem pode julgar o Acontecimento? Não está tudo interligado? Não é todo acontecer um encadeamento eterno? Existe algum fato isolado? O sujeito não é apenas acrescentado?

Dizer não a um instante é dizer não a toda existência...

Outrora era pecado blasfemar contra Deus, Agora é pecado blasmefar contra a existência - quem enxerga a vivência singular se singulariza como um Todo.

Nada está separado - há sempre um grão de injustiça na justiça; um grão de razão no amor; um grão de razão na loucura.

Calemos, e passemos...