Ser ínfimo

Na tentativa de nos livrar da sufocante sina de ser o que já está estabelecido e é imposto por um coletivo, criamos mais gaiolas para dizer: "a este lugar não pertenço, pertenço a este! Sou assim e não assado!"

Como rejeitar ou negar um lugar que aprisiona criando outras grades para nós mesmos?

Basta-me as semelhanças e nesta me espalho vendo os contrastes, celebrando a diversidade.

Não, eu não sou o que me dizem para ser; seja ontem ou hoje, sempre serei eu mesma, uma estreia da vida. Uma novidade jamais encaixada em qualquer fórmula que me descreva. Um mistério a ser acolhido em suas perguntas sem respostas. Sou um "não sei" gigante, para mim e para fora e vibro em minha incompletude. Ser inteira é também ser falta e nisso coroa-se a plenitude.

Podem lançar traços, riscar passos e dizer que sou desse ou daquele jeito, segundo o gênero, a forma ou identidade. Podem e querem nos encaixar porque sofremos de "falta". Queremos cordas para nos agarrar e nos amordaçamos, nos enredamos formando pesos que nos afundam, quando não nos afogam.

Contudo, nesse mergulho vou na maleabilidade das ondas ou na fluidez das gotas, mas sei que tantos outros gostam mesmo é das vagas, ondas altas. E como não sentir que é disso que se compõe o mar?

Por isso, contrario e desdenho das grades desenhadas por meus próprios punhos; me desfaço de todos os desenhos traçados, desmancho, apago, desmonto mesmo e com isso, faço adubo ao que de mim floresce.

Não, não sou rebelde e sou, não trago os punhos a mostra e também o faço, não calejo meus pés para firmar meu passo como verdade, mas também sei que é verdade. Tenho ciência desse caminho que apenas me cabe e nele cabe o ir e vir, o criar e o "descriar", refazer e trazer de volta com outra cara. Remontar-se em novo o tão antigo. Sou o direito que vês e o avesso que se cala. Tenho palavras tortas que mentem e se desmente para que saibam do disforme e da concretude da forma.

As grades são invenções nossas para suprir a falta que não sustentamos por sermos tão pequenos e de olhos famintos. Quem dera pudéssemos trazer delas, as asas que se calam e no pequeno crescermos em real tamanho.

Neste mundo, não é possível ser pouco, é preciso ser ínfimo, minúsculo, lá embaixo onde diminuindo cada vez mais encontramo-nos inteiros.

Kátia de Souza - 04/09/2021